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The Town of Light: onde o real e o ficcional se encontram

THE TOWN OF LIGHT: ONDE O REAL E FICCIONAL SE ENCONTRAM *

Diego Meotti **

Introdução


Nos séculos XVIII/XIX a historiografia possuía forte caráter político e a construção de Estados Nações ocupou um grande espaço da produção historiográfica europeia. Buscou-se uma História científica que almejasse a verdade positiva, além de ocorrer nesse período um predomínio das Histórias Política e Econômica. Para isso, houve a desqualificação da ficção e de narrativas por parte dos historiadores. Tal movimento perdurou por décadas na Europa. Na França, o retorno da narrativa foi discutida a partir dos Annales, demonstrando ser possível a análise dos mais variados documentos (cartas, artefatos arqueológicos, poemas, obras literárias, etc.) visando a escrita da história.

Tal abordagem fez com que se intensificassem os debates em relação a História e Ficção, levando à discussão da subjetividade implícita em toda produção humana. Abordaremos aqui a interpretação de alguns intelectuais como, Hayden White [1] em Tópicos do Discurso: Ensaios sobre a crítica da cultura e Jacques Rancière [2] em A Partilha do Sensível: Estética e política. Utilizaremos a argumentação destes pensadores para analisar o jogo The Town of Light, problematizando suas características históricas e ficcionais.


Histórico e o ficcional


O jogo foi produzido pela desenvolvedora LKA.it, lançado em 26 de fevereiro de 2016. A proposta dos desenvolvedores foi a de criar um jogo de terror que fosse realista. Em uma entrevista ao site horror databe, Lucas Dalcò [3] afirma que “O terror de TTOL é a realidade, a verdade das coisas que são contadas. Um terror que vai além da imaginação e que constitui, ao mesmo tempo, um importante argumento de reflexão.” (HORROR DATABASE. 2016.). O jogo é ambientado no Hospital Psiquiátrico de Volterra [4], na Itália atual (com flashbacks da década de quarenta). O hospital encontra-se em decadência, entregue à floresta.

Os desenvolvedores buscaram reproduzir fielmente dois dos pavilhões que constituíam o sanatório, sendo estes Charcot e Ferri. Seu enredo conta com dois personagens principais: um controlado pelo jogador (não havendo nenhum apontamento claro sobre suas características) [5] e Renée, uma garota que viveu no sanatório no período entre as grandes guerras.

O desenvolvimento da relação entre ambos ocorre apenas no campo psicológico, uma vez que Renée possui a função de narrar os acontecimentos que ocorreram com ela no sanatório – a interação visual entre as personagens ocorre apenas nos flashbacks. Renée sofre de severos problemas psicológicos, tornando-se um desafio compreender se sua memória foi uma alucinação ou uma experiência real. Tal ambientação e enredo (excetuando os diálogos em que o narrador interage com o jogador) abordam temáticas reais, que podem não ter ocorrido com a protagonista, mas sim com pacientes do Sanatório. Isso permite apropriar-se do jogo tomando-o como uma obra artística, uma vez que “A separação da ideia de ficção da ideia de mentira define a especificidade do regime representativo das artes” (RANCIÈRE. 2009. p. 53). Mesmo que os acontecimentos sejam ficcionais, não significa que são mentiras, uma vez que o jogo busca retratar os ocorridos em um espaço tempo real e específico, evitando assim generalizar um tema muito polêmico e complexo.

Dalcò explica na entrevista o motivo da escolha:

O lugar foi escolhido por ser próximo à nossa sede, além de ser uma locação incrível. Foi um dos maiores hospitais psiquiátricos italianos, chegando a conter 5000 pacientes Era praticamente um cidade, com suas oficinas, suas empresas agrícolas, com uma moeda interna com a qual pagavam seus pacientes de menor gravidade. Os anos em que ambientamos o jogo são os anos mais dramáticos da história dos manicômios. Na Itália tinha o regime fascista e os institutos estavam mais cheios do que nunca. Os psicofármacos ainda não existiam e, portanto, as terapias e métodos de contenção eram terríveis. Por fim, foi exatamente neste período, e na Itália, que a prática da lobotomia começara a tomar conta de uma maneira incontrolável. (HORROR DATABASE. 2016.) [6]


A utilização de elementos factuais em ficções torna complexa a classificação do jogo entre uma obra histórica ou ficcional. TTOL foi produzido com base em um espaço físico real; reúne métodos científicos empregados na época ambientada no jogo; compila fontes apresentadas no sanatório e distribui-as ao longo do jogo de forma a embasar fatos criados para a narrativa com base em um “passado concreto”. Uma vez que seu enredo é criado, mas possui uma aproximação profunda com um passado “real” (como é destacado na nota 8), trata-se de fonte histórica ou fonte histórica-ficcional? Tal fronteira entre História e ficção é discutido tanto por Rancière quanto por White:


A distinção mais antiga entre ficção e história, na qual a ficção é concedida como a representação do imaginável e a história como representação do verdadeiro, deve dar lugar ao reconhecimento de que só podemos conhecer o real comparando-o ou equiparando-o ao imaginável. (WHITE. p.115. grifo do autor.)


A soberania estética da literatura não é, portanto, o reino na ficção. É, ao contrário, um regime de indistinção tendencial entre a razão das ordenações descritivas e narrativas da ficção e as ordenações da descrição e interpretação dos fenômenos do mundo histórico e social. (RANCIÈRE. 2009. p. 55).


Ocorre segundo Rancière uma apropriação de características culturais de determinada sociedade nas ficções. Todas as obras literárias produzidas possuem embasamento em contextos históricos, dando-lhes assim significados para os leitores, familiarizando a narrativa com a identidade do indivíduo. Numa perspectiva histórica, Rancière discorre sobre a apropriação de narrativas para análises de pesquisas historiográficas, o que o autor chama de revolução estética. “A revolução estética transforma radicalmente as coisas: o testemunho e a ficção pertencem a um mesmo regime de sentido. De um lado, o ‘empírico’ traz marcas do verdadeiro sob a forma de rastros e vestígios” (RANCIÈRE. 2009. p. 57).

O jogo como obra artística se apropria do contexto do sanatório e de seus pacientes e o apresenta como um horror, algo assustador, traumático. Todavia, segundo White, tal visão é interpretada por quem o narra. “Quando um dado concurso de eventos é narrado no modo da ‘tragédia’, isto significa apenas que o historiador descreveu dessa forma os eventos para nos lembrar aquela forma de ficção que associamos ao conceito de ‘trágico’.” (WHITE. p.108. grifo do autor). Não trata-se de afirmar que o contexto retratado não possuiu seus traços marcadamente violentos e sombrios, mas que este contexto, visto de outras perspectivas enriqueceria o tema. Não se trata somente de problemas psicológicos, mas também de desenvolvimento econômico, político e social, variando a partir das perguntas lançadas pelos historiadores, sociólogos, antropólogos e etc.

Seguindo tal linha de raciocínio o jogo se utiliza de uma visão que problematiza um tema que parte da sociedade (local, regional, nacional e internacional) evita discutir, cabendo ao historiador – e também ao jogo nesse caso - tal tarefa segundo White:


Os historiadores procuram nos refamiliarizar com os acontecimentos que foram esquecidos por acidente, desatenção ou recalque. Ademais, os maiores historiadores sempre se ocuparam daqueles acontecimentos nas histórias de suas culturas que são ‘traumáticos’ por natureza e cujo sentido é problemático ou sobre determinado na significação que ainda encerram para a vida atual, acontecimentos como revoluções, guerras civis, processos em grande escala como a industrialização e a urbanização, ou instituições que perderam sua função original numa sociedade mas continuam a desempenhar um papel importante no cenário social contemporâneo. (WHITE. p. 104).


Neste caso o jogo se apropria deste conteúdo “esquecido”, chegando a um público (jogadores) não familiarizado com tal discussão, aumentado assim o espaço de discussão de tal assunto: jogadores, pesquisadores e enfim, toda a massa populacional que possa por ventura adquirir o jogo.


Conclusão


A partir deste ponto, levantamos o questionamento: de que forma jogos que possuem temáticas históricas, nesse caso The Town of Light, podem ser apropriados por historiadores? Podemos destacar aqui três possibilidades: a primeira seria apropria-lo como uma fonte do tempo que está sendo retratado no jogo. Ao nosso ver, este jogo não possibilita seu uso como fonte primaria, pois, embora haja um comprometimento com o real, não há no jogo nenhuma imagem que comprove a autenticidade dos documentos apresentados, nem dos espaços em si. Porém, o jogo possibilita levantar questionamentos e a busca por documentos, uma vez que o sanatório fechou a menos de 30 anos, sendo provável haver ainda um amplo arquivo tanto de documentos quanto de testemunhas que por ali passaram.

Outra possibilidade seria a de buscar as intenções do desenvolvedores ao criarem a obra, qual o motivo de ter-se produzido o jogo com está temática. Buscando compreender o contexto da sociedade no qual estão inseridos tanto os produtores quanto seu público.

Por fim, analisar o que e como o conhecimento histórico está sendo apresentado para a população. Uma das funções do historiador é produzir um conhecimento que seja útil para a sua sociedade, que não fique somente trancado nos limites das universidades. Portanto, os historiadores deveriam analisar a forma como o conhecimento histórico está sendo apresentado, se apropriando de tais mídias para desconstruí-las ou para servir de exemplo de representação de uma historiografia acadêmica.

Pesquisas históricas nesta área não são muito comuns, ainda mais se retirarmos os estudos relacionando estas mídias com o ensino de História no país. O jogos são ferramentas produzidas recentemente; todavia, estas não devem ser deixadas de lado pela historiografia, pois estes produtos possibilitariam disseminação dos conhecimentos historiográficos, servindo assim como uma ferramenta de reflexão social e histórica.


Referência(s)


LIMA, Makson. The Town of Light (2016): Entrevista com Luca Dalcò, fundador da LKA. Disponível em: < http://www.horrordatabase.com/horror-database-entrevistas/the-town-of-light-2016-entrevista-com-luca-dalco-fundador-da-lka >. Acessado em: 20 de agosto de 2016.


LKA.it, 2016. The Town of Light.


O Texto Histórico como Artefato Literário (p.97-116). In: WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. 2° Ed. São Paulo: EDUSP, 2001


Se é preciso concluir que a história é ficção. Dos modos da ficção (p.52-62). In: RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do sensível. 1° Ed. São Paulo: EXO, 2009.


Notas


* Ensaio elaborado para disciplina Introdução a Filosofia, ministrada pelo professor Élcio Cora, em 2016/2, 3° semestre


** Alunos do cursos de História da Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Chapecó. Contatos: abielk30@gmail.com; diego_meotti@hotmail.com; hilario.ramos@live.com;.


1 Historiador estadunidense, profundo crítico das epistemologias da historiografia


2 Filósofo francês, professor da European Graduate School de Saas-Fee e professor emérito da Universidade de Paris.


3 Fundador da desenvolvedora LKA.it.


4 Hospital psiquiátrico italiano que funcionou no século XX até 1978, quando o governo italiano aprovou uma lei que proibia duros tratamentos a pacientes com transtornos mentais. O hospital de Volterra ficou conhecido como “lugar de não retorno”, local onde passou mais de 6000 pacientes. Sendo especializados em tratamentos com eletrochoque. Hoje, o hospital se encontra abandonado. Disponível em: < http://www.dailymail.co.uk/news/article-2552883/The-forgotten-Italian-asylum-home-6-000-patients-sent-treatment-never-allowed-leave.html > Acessado em: 03/10/2016.


5 O fato das características da personagem não serem apresentadas, abre espaço para uma reflexão acerca do indivíduo que interage com o jogo; a possibilidade de inserir-se na história do jogo como personagem intrínseco à narrativa pode imergir o indivíduo na complexidade da narrativa e de seus fatos.


6 É possível acessar o referencial bibliográfico utilizado pelos desenvolvedores a partir do link http://www.thetownoflight.com/blog/research/.





o Projeto cultura pensante

O projeto "Cultura Pensante" é um movimento criado por integrantes do Centro Acadêmico de Filosofia (CAFIL) do Campus Chapecó da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), vinculando-se a este órgão representativo, com o objetivo de criar e divulgar cultura.  O projeto engloba, de um lado, a criação e divulgação e atividades culturais, e, de outro, a divulgação a um público externo da síntese dos conhecimentos construídos pelo projeto por meio da revista digital sediada nesse espaço.

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