O Grande Massacre de Gatos: dos desconhecidos historicamente aos grandes iluministas
O GRANDE MASSACRE DE GATOS: DOS DESCONHECIDOS HISTORICAMENTE AOS GRANDES ILUMINISTAS
Diego Neivor Perondi Meotti[1]
DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos: e outros episódios da história cultural francesa. 4. ed. Rio de Janeiro: GRAAL, 2001. 363 p.[2]
Historiador cultural, Robert Darnton é o autor do livro O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. Nascido em 10 de maio de 1939 em Nova Iorque, formou-se como historiador em Harvard e possui doutorado em história na universidade inglesa de Oxford. Darnton é especialista em história da França do século XVIII, seus estudos estão voltados para o Iluminismo e a Revolução Francesa. Desde 2007 trabalha como diretor na Biblioteca da Universidade Harvard. Algumas de suas principais obras são: O Iluminismo como Negócio (1996) e Os Best-Sellers Proibidos da França Pré-revolucionária (1998).
No Grande Massacre de Gatos, a partir da teoria-metodologia da História Cultural, Darton buscou compreender como os franceses pensavam no século XVIII. Para fazer isso Darnton utilizou-se de um grande acervo documental – alguns considerados incomuns no período –, sendo dos mais diversos tipos como: contos oralmente transmitidos de geração para geração, uma narrativa produzida por um datilógrafo, um texto que buscava descrever uma cidade, um arquivo policial, a Enciclopédia dos iluministas e cartas escritas por leitores de Rousseau. A obra possui seis capítulos e Darnton dedicou cada um deles para compreender como os membros de cada grupo da sociedade pensavam, começando pelos camponeses, seguindo para os artesãos, burgueses, escritores, filósofos e por fim, os leitores de Rousseau.
Nesta resenha será debatido sobre a abordagem teórico-metodológica de Darnton no livro, e, a partir disso discutir sobre a influência dessa abordagem em seu trabalho. Veremos algumas das fontes que usou buscando compreender a forma com que aplicou sua abordagem teórica na interpretação dos documentos.
Robert Darnton é um historiador que toma como referência teórico-metodológica da terceira geração do movimento francês dos Annales – pós 1960 –, a história das mentalidades[3]. Para Darnton, a história das mentalidades tem o objetivo mostrar como as pessoas entendiam e interpretavam o mundo (p.13). Para fazer isso o historiador utilizou-se da relação interdisciplinar para dialogar com a etnografia, apropriando-se das técnicas desta e as adaptando do trabalho de campo para o arquivo. Para Darnton, um historiador etnográfico “estuda a maneira como as pessoas comuns entendiam o mundo. Tenta descobrir sua cosmologia, mostrar como organizavam a realidade em suas mentes e a expressavam em seu comportamento” (p.14). Uma das problemáticas que o autor levanta no texto é a seguinte: os etnólogos trabalhavam com comunidades que possuem culturas diferentes das dos pesquisadores, buscando justamente perceber como os membros destes grupos interpretavam o mundo. A questão é: se o autor está inserido na cultura – ocidental europeia – do grupo que vai trabalhar, quais foram os mecanismos que Darnton usou para ver de uma forma diferente os franceses do XVIII?
Para compreender o seu trabalho, precisamos entender as características que buscava nas fontes. Darnton buscou fontes que “Analisando o documento onde ele é mais opaco, talvez se consiga descobrir um sistema de significados estranho. O fio pode até conduzir a uma pitoresca a maravilhosa visão de mundo.” (p.15). O autor buscou documentos que possuíssem elementos estranhos, diferentes, que causassem uma noção de desentendimento, algo que fosse estranho mesmo para as pessoas do presente que se orgulham dos feitos do movimento Iluminista do período.
A principal fonte de Darnton no capítulo 1 – Histórias que os camponeses contam: o significado de mamãe ganso – é a obra Le Conte populaire français de Paul Delareu e Marie-Louise Tenèze, uma coletânea de contos populares franceses recolhidos em 1976. Delarue e Tenèze buscaram registrar neste livro todas as versões dos contos, recolhidos a partir dos relatos de narradores de todas as partes do território francês. Segundo o autor, os estudos dos folclores populares foram uma “febre” na década de sessenta, pesquisadores buscaram trabalhar os aspectos linguísticos e etnográficos dos contos, compreendendo-os como performances[4]. Estes pesquisadores – etnólogos – tiveram a possibilidade de presenciar as performances, mas o próprio Darnton aponta a impossibilidade de presenciar como estes artistas – os bardos – contavam os contos no passado, como um complicador. O historiador tem a total consciência dessa falta e da possibilidade dos contos relatados não serem fiéis aos contados no século XVIII (p.33). Entretanto, eles existiram no período e antes deste. Suas origens segundo o autor são muito anteriores, já observados na antiguidade (p.31). Seu objetivo, no entanto, não é descobrir sobre as origens dos contos, mas as suas características específicas no século XVIII na França que os diferenciava dos demais – tanto espacialmente como temporalmente.
Para interpretar as particularidades dos contos franceses o historiador utilizou-se da teoria comparativa em diferentes escalas espaciais. Delarue e Tenèze chegaram registraram mais de 30 versões de um mesmo conto. Darnton se apropria de tamanha quantidade de versões para buscar nelas suas semelhanças. Não obstante, para formular uma hipótese sobre a forma como os camponeses pensavam, o historiador comparou as características de diferentes contos, buscando traços em comum. Um assunto que aparece com relativa frequência nos contos era a fome, a luta pela sobrevivência (pp. 43-45). “Mas, empanturrar-se eles de carne ou de papa, a barriga cheia vem em primeiro lugar, entre os desejos dos heróis camponeses da França. Era tudo o que aspirava a Cinderela camponesa, embora tivesse conseguido um príncipe.” (p. 53). Darnton também comparou os contos da coletânea com versões de obras do período, como a de Charles Perrault em Contes de mama mère l˙oye. Não obstante, para melhorar sua argumentação o autor também compara o estilo francês das narrativas com os de outras regiões como a Inglaterra, Itália e Alemanha. Apontando que mesmo os contos – de diversas regiões – tendo uma estrutura semelhante, as narrativas possuíam diferentes tons (pp. 70-85) e interpretações - distintas visões de mundo. O que torna possível uma análise mais sólida por parte do historiador.
No capítulo cinco, Os filósofos podam a árvore do conhecimento: a estratégia epistemológica da Encyclopédie, o autor trabalha com o grupo social que nos é mais conhecido, aqueles da qual denominamos como os membros[5] centrais do movimento Iluminista. A obra – que também é muito conhecida - é um compilado de trabalhos produzidos por intelectuais do período, os organizadores da Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métier, par une sociètè de gens de lettres foram Denis Diderot e D'Alembert. A Encyclopédia é considerada a obra mais importante do período e o movimento dos Iluministas como o símbolo do conhecimento científico. O que mais Darnton poderia observar que outros historiadores não observaram - ou não deram a devida atenção? A partir da perspectiva da História Cultural o historiador buscou analisar quais eram os objetivos particulares deste grupo que se poderia discutir. O autor começa debatendo a importância das classificações para as sociedades. É o elemento organizador das ações sociais dos seres humanos. “Toda ação social flui através de fronteiras determinadas por esquemas de classificação, tenham ou não uma elaboração tão explícita quanto a de catálogos de bibliotecas, organogramas e departamentos universitários.” (p. 249). Se a classificação organiza uma sociedade, quem as organiza são consideradas as pessoas (ou grupo) mais influentes, pois é a partir dos limites ditados por estes que os indivíduos compreenderiam o mundo. Para analisar qual era a proposta de Diderot de D’Alembert o historiador procurou comparar o “mapa” criado na Encyclopédia com o de outras obras que buscaram classificar o conhecimento no passado[6], como as obras de Ephraim Chambers e a de Francis Bacon.
Criar uma árvore epistemológica e alterar a importância de alguns conhecimentos foi um passo perigoso. Para Darnton, Diderot e D’Alembert buscavam a partir de sua árvore epistemológica tomar o lugar que a religião ocupava no poder do período como centro do conhecimento epistemológico. “Diderot e d’Alembert se arriscaram muito, ao desmancharem a antiga ordem do conhecimento e traçarem novas linhas entre o conhecido e o desconhecido.” (p. 250).
Para uma interpretação mais bem elaborada o diálogo entre os documentos do capítulo quatro - os arquivos do policial Joseph d’Heméry sobre todos os escritores de Páris e dos arredores[7]- e cinco foi essencial. Tais documentos encontrados nos arquivos trazem novas indagações sobre como eram vistos estes indivíduos que escreviam. Para o historiador, o inspetor d’Hemery sabia do poder que obras escritas tinham, o de mudar a estrutura do poder – não no sentido de revolução, mas de denúncia de alguns membros destas estruturas. Isso possibilitou a Darnton entender os filósofos/intelectuais do período de outra forma. “Observando a polícia vigiar as tendências de Diderot, vê-se a obscura figura do intelectual tomar uma forma perceptível e emergir como uma força a ser considerada, na França do início dos Tempos Modernos.” (p.240). A metodologia de uma teoria da História Cultural – e os novos documentos que foram encontrados e utilizados pelos historiadores – possibilitou a Darnton observar um período já extremamente estudado a partir de uma ótica diferente.
Portanto, o trabalho de Robert Darnton é válido e de extrema importância, pois a História é uma ciência que se transforma constantemente, suas perguntas, teorias e metodologias mudam de acordo com as novas problemáticas que os historiadores trazem de tempos em tempos. Em sua abordagem teórico-metodológica Darnton trabalhou de forma crítica, utilizando um extenso número de fontes, estas sendo dos mais diversos tipos, suas interpretações não vieram do nada, portanto, não podem ser tratadas como nada dentro da História enquanto ciência. Entretanto, não podemos pensar que suas interpretações são incontestáveis, o próprio historiador tem total consciência disso. Podemos considerar seu trabalho corajoso – da mesma forma que os historiadores das mentalidades franceses e os membros da nova história cultural inglesa –, pois se propuseram a pensar além do que estava estabelecido, pensaram além das fronteiras, e dar este passo é algo constante e importante para a ciência.
Notas
[1] Acadêmico do curso de História da Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Chapecó. Contato: diego_meotti@hotmail.com.
[2] Resenha elaborada para o componente curricular Teoria e Metodologia da História II, ministrada pelo professor Dr. Ricardo Machado, em 2017/1, 4° semestre.
[3] Para os ingleses seria algo como uma História cultural, segundo o autor. p. 13.
[4] Seriam como apresentações artísticas, em que o artista utilizaria das mais variadas técnicas para narrar uma história como a dança, música e a mímica.
[5] No capítulo quatro, Um inspetor de polícia organiza seus arquivos: a anatomia da república das letras, Darnton buscou explicar como os membros da sociedade - no capítulo podemos colocar como especificamente um inspetor de polícia que trabalha a serviço do rei – enxergavam esse novo grupo social, os escritores. O autor analisa através dos relatórios e formula a noção de que os membros das camadas mais acima tinha da noção do poder do conhecimento e da escrita e de como isso poderia mudar a estrutura do poder vigente.
[6] Estas obras acabaram influenciando a construção da árvore epistemológica dos iluministas.
[7] Segundo Darnton, d’Hémery possuíam informações – em maior ou menor escala – de todos aqueles que já haviam escrito algum texto. Não havia a profissão de escritor.
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