Filosofar e filosofia: dois momentos do fazer filosófico na escola
FILOSOFAR E FILOSOFIA: DOIS MOMENTOS DO FAZER FILOSÓFICO NA ESCOLA
Derócio Felipe Perondi Meotti*
A grande dúvida da maior parte daqueles que assumem o desafio de dar aulas de filosofia no ensino médio hoje em dia é este dilema: filosofar ou filosofia? Tem-se insistido muito na proposta de que ensinar filosofia não é tão importante assim, mas sim o filosofar. Mas por que não os dois? Neste ensaio, defenderemos o ponto de vista no qual ambas se complementam, mas antes precisamos definir o que entendemos por uma e outra, para compreender por que um lado arroga o filosofar para suas fileiras, e o outro a filosofia, e só então apresentar uma defesa para o argumento da complementariedade de ambas.
1. Filosofar
Esta noção do filosofar, que entendemos como o pensamento refletindo sobre um conteúdo específico (porém, sem diferença de valor com relação aos demais), é típica da tradição kantiana e neo-kantiana. Por filosofar, ou seja, a ação das categorias do pensamento sobre um conjunto de dados do diverso da sensibilidade, concebemos toda ação ativa [1] da razão – ou pensamento – sobre as coisas [2] no mundo. Este “perguntar-se sobre as coisas”, dentro da sala de aula, tem uma aplicação simples e clara: qualquer conteúdo serve de ponto de partida para a reflexão. Como isso, podemos pensar a filosofia como um refletir sobre algo, inquirir algo de alguma coisa, investigar para buscar respostas para as nossas dúvidas. Dentro destes limites investigativos, que não são nem um pouco estreitos, estão todas as áreas da ciência, religião, vida cotidiana, filosofia, e toda e qualquer outra coisa que se possa imaginar. Assim, o professor de filosofia pode muito bem, a partir desta noção da aula de filosofia como uma prática ou exercício do filosofar, construir uma problematização complexa e profunda com seus alunos a partir de temas próximos à vivência destes alunos, como por exemplo a corrupção, o preconceito, a desigualdade social, o sistema de educação, e etc. Consequentemente, dentro desta visão a aula de filosofia também pode ser uma maneira de refletir sobre o conteúdo aprendido em outras matérias, como física, matemática, linguagens, química e biologia. Como a tendência destas matérias é fornecer um conjunto de técnicas e métodos definidos com vistas à reprodução desta técnica, é muito comum que em tais matérias os alunos não consigam identificar os porquês de tais técnicas serem as mais aceitas, ou quais os motivos que fizeram com que ela fosse a mais aceita dentre todas as técnicas inventadas na história para abordar determinado problema. Um bom exemplo prático é a teoria da evolução de Darwin. Nas aulas de biologia aprendemos que antes de Darwin outros naturalistas investigaram os mistérios da evolução, dentre eles Lamarck. Porém, muitas vezes o professor apenas ensina as diferenças das técnicas e justifica dizendo que a teoria darwiniana é a mais aceita porque explica melhor do que as antigas os eventos que aborda. Mas é isso suficiente? São as aulas de mecânica newtoniana suficientes para contextualizar e justificar essa busca por uma física sustentada por leis universais absolutas? A resposta muitas vezes é não, e é neste momento que entra a filosofia, ou melhor, o filosofar nas aulas de filosofia, no qual o professor, fazendo com que os alunos – ou melhor, a razão dos alunos – percorra o mesmo caminho que Newton ou Darwin tiveram que percorrer para entender a dimensão dos problemas e dilemas que tinham em mãos. Portanto, dentro desta visão, o conteúdo de uma aula de filosofia não precisa ser a história canônica da filosofia, mas pode ser qualquer coisa, desde que haja um filosofar sobre este conteúdo. Este conteúdo, como vimos, pode ser a própria filosofia, mas não precisa estar limitada a ela. Um problema que surge, apesar das vantagens, é que algumas pessoas podem perguntar: mas por que precisamos de aulas de filosofia, uma vez que o filosofar é uma faculdade natural de todas as pessoas, e todas as pessoas podem chegar nela por conta própria? Ao contrário da física, que precisa de um professor para transmitir conhecimento, qual a utilidade do professor de filosofia quando não existe conhecimento a ser transmitido? Com isso, alguns alegam que a história da filosofia é importante não apenas para compreender o que é a filosofia, mas também justificar a existência de uma matéria chamada “filosofia” e um professor para ela. Deste modo, antes de apresentarmos uma visão conciliador entre filosofar e filosofia, vamos analisar os argumentos do outro lado da disputa.
2. Filosofia
Se por um lado alguns defendem que mais importante do que transmitir um conhecimento objetivo de história da filosofia é o próprio filosofar enquanto prática cotidiana, por outro lado alguns defendem que o conhecimento filosófico para ser enquanto tal, deve estar relacionado com a história da filosofia. Este tipo de pensamento, infelizmente, é resquício de um pensamento tradicionalista de origem medieval-dogmática, além de possuir uma certa influência da metafísica seiscentista [3]. A influência da metafísica deste período é perigosa por que, alegando a possibilidade de chegar-se a um conhecimento verdadeiro no âmbito metafísico, admite que, uma vez obtido este conhecimento, ele pode ser transmitido dogmaticamente aos outros. Este aspecto problemático – a transmissão dogmática do conhecimento – é um problema que remonta à Platão e seu mito da caverna. Nesta alegoria, o indivíduo consegue se libertar dos grilhões (aparências) e sair da caverna. Ao sair da caverna, ele contempla a luz do sol (a verdade, ou o Bem), e a partir deste momento, em que a verdade é des-velada a ele, pode-se dizer que ele possui o conhecimento da Verdade, do Bem, da Justiça, e que a partir deste conhecimento ele pode dizer com segurança o que é justo, e o que não é, o que é belo, e que não é, o que é certo, e o que não é, e assim por diante. Entretanto, o que a crítica cética [4] mostrou posteriormente é que, apesar de Platão dizer que o indivíduo que supostamente conhece o Bem [5] deve também ser capaz de diferençar o certo do errado, justo do injusto e etc, ele não diz na República (e em nenhuma outra obra sua) o que seria este tal Bem, ou a tal da verdade última e absoluta. Com isso, não é difícil imaginar alguém que está convencido de que possui este conhecimento, e que, como já o encontrou, não vê por qual motivo os outros precisariam procurá-lo também. Assim, a partir desta noção platônica de conhecimento metafísico aliada à exacerbação do dogmatismo na escolástica (com consequências na metafísica seiscentista), podemos identificar quais os motivos que levam muitas pessoas a defender o ensino de filosofia tradicional nas escolas: porque é o conhecimento verdadeiro e inquestionável. Esta crítica não é inválida, muito pelo contrário. Entretanto, ela respinga também nos aspectos bons do ensino de história da filosofia. A filosofia pode ser ensinada enquanto história da filosofia, como história do pensamento (ocidental, na maioria das vezes), mas não deve fazer isso de forma dogmática. Como veremos a seguir, a filosofia pode ser o conteúdo de uma aula de filosofia, e o filosofar pode ser o pensamento agindo sobre este conteúdo de forma que ele não seja re-transmitido de forma mecânica, mas que estimule cada aluno a re-fazer todos os passos que o pensamento filosófico já deu no decorrer de sua história.
3. Filosofar e filosofia
Como vimos, a filosofia não é apenas a transmissão dogmática e mecânica de conhecimentos — como acontece nas aulas de física, química, biologia e etc —, mas é a transmissão de formas de pensar sobre a realidade. Se as aulas de filosofia forem feitas deste modo, o próprio “pensar sobre a realidade” torna-se algo vazio, sem sentido, e consequentemente a própria filosofia se torna também. Deste modo, uma alternativa que se encontrou foi deixar a história do pensamento filosófico de lado, e focar na atitude filosófica, ou seja, no filosofar. Porém, como vimos, esta atitude puramente reflexiva pode deslegitimar o papel do professor de filosofia, uma vez que a atividade reflexiva pode ser desenvolvida pelos próprios professores de física, química, matemática e etc, caso eles se disponham a tal coisa. Para que não tenhamos nem um problema, nem outro, o caminho pelo qual a solução de desvela aos nossos olhos parece ser o da união entre os aspectos bons de cada uma das formas de dar aula de filosofia. Ou seja, as aulas de filosofia podem sim ter um conteúdo específico de filosofia, como o conteúdo da física é a física, e o da matemática é a matemática. E mais: mesmo que os professores de física e matemática usem-se da reflexão filosófica em suas matérias, eles não vão deslegitimar o papel do professor de filosofia. Isso porque a filosofia, enquanto filosofar, não pode ser dissociada da história da filosofia, ou seja, da história do filosofar. Esta visão, de origem hegeliana, apresenta uma relação dialética de mútua dependência entre filosofia e filosofar. Dentro dela, podemos imaginar a filosofia como resultado do processo de filosofar, e o filosofar como a prática reflexiva sobre a própria filosofia. Este movimento, ensinar filosofia, filosofar sobre ela, fazendo assim filosofia e filosofando de novo sobre ela, faz com que a aula de filosofia não seja apenas filosofar ou apenas filosofia, mas que seja um processo no qual uma é o resultado da outra, uma é feita a partir da outra e faz-se enquanto tal nesta relação. Portanto, uma aula de filosofia pode ser uma aula expositiva sobre o pensamento de Spinoza, e depois se tornar uma aula de reflexão sobre esta filosofia. Um filosofar que re-percorre os passos percorridos por Spinoza em sua argumentação, e que a partir de tal reflexão tornará possível o surgimento de uma nova filosofia, diferente daquela apresentada no início da aula. O mesmo pode ser feito em uma aula sobre filosofia e ciência sobre Schlick. Não precisa ser uma aula no qual se filosofa sobre o que se aprendeu em física, mas pode ser uma aula no qual se apresenta a filosofia da ciência de Schlick, e depois se reflete sobre este pensamento, fazendo com que no decorrer do processo a filosofia inicialmente apresentada torne-se outra, a partir do qual o processo se repetirá no decorrer das demais aulas e, se tudo funcionar como planejado, não apenas nelas, mas na própria vida cotidiana dos alunos. E isso todo porque a aula de filosofia não é apenas uma aula de história do pensamento, e muito menos apenas de reflexão sobre qualquer coisa, mas é uma história do pensamento refletindo a si mesmo e, assim, perpetuando-se.
NOTAS
* Licenciando da quarta fase do curso de Filosofia da Universidade Federal da Fronteira Sul campus Chapecó. Ensaio para o CCR Metodologia do Ensino de Filosofia, feito sob supervisão do Prof. Me. Vanderlei Smaniotto. E-mail para contato: derocio_meotti@hotmail.com
1 Ação ativa pode parecer uma expressão tautológica, mas a intenção aqui é reforçar a ideia de que a ação do pensamento é uma ação livre, sem uma determinação prévia. Esta outra ação, que possui uma determinação anterior, não pode ser livre, logo, é uma espécie de ação passiva, por isso ressalto esta distinção quando se trata da ação do intelecto sobre o diverso da sensibilidade.
2 Devido à complexidade do problema, não nos aprofundaremos aqui na distinção entre coisa em-si e fenômeno. Quando falarmos em mundo no decorrer deste ensaio – dentro de uma perspectiva kantiana – estaremos sempre nos referindo ao mundo fenomênico.
3 Deve-se ter em mente que, se critico esta metafísica seiscentista, é porque ela difere da metafísica pós-kantiana em um aspecto fundamental: enquanto a metafísica pré-kantiana buscava um conhecimento metafísico análogo ao conhecimento físico, a metafísica pós-kantiana já não tem esta pretensão, mas busca uma metafísica do conhecimento, que está antes interessada nas condições de possibilidade do conhecimento do que numa busca por uma verdade (em contraposição ao falso).
4 Por ceticismo entendo a raiz do termo grego σκέψις, ou seja, investigação. O cético é aquele que investiga, e que não aceita uma noção de verdade enquanto tal noção puder ser posta em dúvida por uma hipótese contrária. Deste modo, a crítica cética que defendo não é aquela que nega que uma verdade última possa ser encontrada (já que assim o ceticismo seria tão dogmático quanto o dogmatismo), mas aquela que alega que um indivíduo pode achar que encontrou a verdade e, a partir disso, se convencer de que detém o “conhecimento do bem e do mal” e que pode impor este conhecimento aos outros.
5 Nota-se uma relação de implicação: o indivíduo que conhece o Bem deve necessariamente saber, a partir dele, distinguir bem e mal, certo e errado, e etc.
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