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Do ser ao não-ser: a relação entre o λόγος e a verdade/falsidade dos enunciados sobre a realidade

DO SER AO NÃO-SER: A RELAÇÃO ENTRE O λόγος E A VERDADE/FALSIDADE DOS ENUNCIADOS SOBRE A REALIDADE

Derócio Felipe Perondi Meotti*

Quando falamos em “verdade” ou “falsidade” de enunciados, é difícil não partirmos logo para a discussão contemporânea acerca da linguagem. Porém, esta discussão não é tão nova assim, e já na antiguidade grega ela tinha um papel fundamental: dizer algo verdadeiro sobre o mundo (φύσις), ou, se preferirmos, sobre o real. Deste modo, não demorou muito para que a filosofia percebesse a importância do discurso (λόγος), e através dele começasse a “enunciar” o real. O que disso resultou foi que, por trás de cada concepção de discurso, havia uma concepção sobre a realidade, que delimitava o campo de possibilidades deste discurso e, portanto, delimitando também que tipo de discurso pode almejar o adjetivo de “verdadeiro”. Uma das concepções de λόγος que cedo impactou a história do pensamento foi a de Heráclito. Ao seu modo de ver, o λόγος é não apenas um discurso ordinário, mas o discurso por excelência. Mas por que Heráclito põe o λόγος acima dos demais discursos? O filósofo de Éfeso nos diria que é porque o λόγος é o discurso que, ao ser concebido, “capta” a ordem (κόσμος) por trás das mudanças na realidade. Esta resposta, por si só, parece insuficiente; entretanto, um leitor mais atento pode ter percebido que deixamos de falar – propositalmente – de um aspecto importante do pensamento de Heráclito: sua concepção do real, ou, para sermos mais precisos: sobre o ser. Heráclito vê na natureza (φύσις) constante mudança. Um rio é e não é o mesmo. Podemos achar que, ao entrarmos nele duas vezes, estamos entrando no mesmo rio, mas suas águas não são mais as mesmas, e até mesmo nós mudamos um pouco entre cada vez que entramos nele[1]. E, como não é difícil de adivinhar, tudo que existe está em constante mudança. Como o que existe está sempre mudando, aquilo que agora é, logo depois deixará de ser, de modo que em cada ser que já existe está compreendido seu não-ser, como também em cada não-ser está envolvido seu contrário no eterno vir-a-ser da natureza. Porém, se tudo está em constante mudança, como é que isso acontece? Há algum princípio originário (ἀρχή) que explique a mudança? Há uma ordem por trás dela? Segundo Heráclito, sim. Tudo muda, exceto o fato que tudo muda. E mais: esta ordem por trás da mudança é o próprio λόγος, que enuncia a si mesmo como discurso sintonizado com a ordem por trás da mudança, dizendo que a luta dos contrários (pόλεμος) é o próprio modo de ser da natureza, como “um fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas” (HERÁCLITO, DK 22 B-30). Com efeito, podemos ver de que modo, para Heráclito, o λόγος é o discurso que enuncia algo de verdadeiro sobre o ser: ele é tal porque, ao comportar a contradição em suas palavras, traz consigo a ordem por trás da mudança, ou seja, o próprio λόγος. Se, por um lado, vemos Heráclito conciliando “ser” e “não-ser” para mostrar que a constante “luta” entre um e outro, captada no discurso, é o próprio λόγος, por outro temos Parmênides, cuja opinião parece ir na direção oposta. Para o eleata, só sobre o ser pode-se investigar. Impossível é qualquer tentativa de enunciar-se algo de verdadeiro sobre o não-ser. Tais afirmações se justificam no modo como o filósofo concebe a realidade. Segundo a tese parmenídica, somente o ser “é”. Ser, pensar e dizer são uma e mesma coisa. O “não-ser” não pode existir, porque se existisse seria “ser”. Ele também não pode ser pensado, uma vez que tudo que concebemos “é” algo. E, por fim, também nada pode-se dizer sobre o não-ser, uma vez que todo discurso deve referir-se a um ser. Parmênides justifica tal tese refutando exatamente aquilo que Heráclito afirmou: para o eleata o ser é “imóvel”, uma vez que a mudança pressupõe a diferença e, como a única coisa diferente do “ser” é o “não-ser”, e o “não-ser” nada é, o “ser” deve ser sempre o mesmo. Pelos mesmos motivos, deve ser incriado e indestrutível, pois de onde viria? Do não-ser? Para onde iria? Para o não-ser?[2] Se tivesse vindo de outro ser, ambos seriam “ser”, e não haveria uma diferença entre eles que pudesse sinalizar a mudança. Além disso, ao contrário de Heráclito, que defende que o ser é múltiplo, Parmênides afirma que o ser é uno. É importante notar, antes de prosseguirmos, que “ser” para os dois filósofos diz respeito a coisas diferentes, o que pode causar confusão. Enquanto para Heráclito o “ser” (bem como o “não-ser”) está na natureza (φύσις), para Parmênides ele se refere ao conjunto da totalidade do que existe. Como consequência, é possível entender o “não-ser” de Heráclito como negação de atributos/características, enquanto o “não-ser” de Parmênides parece “referir-se” muito mais ao nada, ou à completa inexistência. O problema que resulta disso é que, ao atrelarmos este λόγος logicizante de Parmênides ao discurso, temos a impossibilidade do discurso falso, já que, se o discurso for compreensível (fizer sentido) ao ouvinte, ele deve referir-se ao ser, e portanto, deve ser verdadeiro. Platão, mais tarde, perceberá este problema, e, para refutar o sofista, terá que cometer o que ficou conhecido como “parricídio metafísico”. Parricídio porque muito do pensamento de Platão provém de Parmênides, já que é dele que pega a noção de “uno” e “imutável” para aplicar ao âmbito inteligível da realidade, ao passo que de Heráclito ele pega a noção de “múltiplo” e “mutável” e aplica ao âmbito sensível desta mesma realidade. Seu parricídio consiste em, após muito tentar derrubar o sofista usando-se da tese parmenídica, concluir que é preciso abandoná-la e dizer que, sob certo aspectos, o “não-ser” pode, de fato, ser, e vice-versa. Para tal, Platão diz que, por vezes, o discurso apresenta “o que é” como “não-sendo”, e o que “não é” como “sendo” algo. Para isso, ele tem que desatrelar a verdade do enunciado da possibilidade de verdade[3] dele. Assim, para evitar este tipo de consequência, Platão traz para o âmbito do discurso o “não-ser” como “ser outro”, ou seja, como alteridade. Deste modo, pode-se dizer que o “ser” desta cadeira é o “não-ser-caderno”, e que o “não-ser” do caderno é tudo aquilo que for “diferente” dele. Portanto, percebe-se que, como nota Platão, o “ser” de Parmênides, abarcando a totalidade do que existe, não permite desdobramentos discursivos quanto à verdade e falsidade das coisas (seres) da natureza. Deste modo, ele (Platão) se vê obrigado a retomar a concepção de “não-ser” de Heráclito para tornar o discurso falso possível. Com este sendo possível, é preciso mostrar como o discurso do sofista é falso, uma vez que pretendia convencer os outros que o que é não é, e que o que não é, é. Assim, percorrido este trajeto do λόγος enquanto discurso que visa o real, podemos concluir que ele, para ser verdadeiro, deve referir-se não ao ser em geral, mas aos seres[4] que existem de fato (efetivamente), uma vez que, sem esta condição, não se é possível decidir qual discurso é verdadeiro, e qual não é.


REFERÊNCIAS


HERÁCLITO. In: Os Pensadores I – Pré-socráticos. São Paulo-SP. Abril S.A. Cultural e Industrial. 1. ed. 1973.

PARMÊNIDES. In: Os Pensadores I – Pré-socráticos. São Paulo-SP. Abril S.A. Cultural e Industrial. 1. ed. 1973.

PLATÃO. A República. Introdução, tradução e notas por Maria Helena da Rocha Pereira. Coimbra. Fundação Calouste Gulbenkian. 2010.

PLATÃO. O Sofista. In: Diálogos. Seleção de textos de José Américo Pessanha; traduções e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz da Costa. 2. ed. São Paulo-SP. Abril Cultural. 1979. (Coleção Os Pensadores).

GABOARDI, Ediovani Antônio. Parmênides e a descoberta do pensamento. Filosofazer. Passo Fundo, ano XI, no 21, p. 77 a 96, 2002/II.

SANTOS, Maria Carolina Alves dos. A lição de Heráclito. Trans/Form/Ação, São Paulo-SP, 13: 1-9, 1990.

SPINELLI, Miguel. O Postulado de Parmênides enquanto Contraditório da Física e Ponto de Partida da Metafísica de Aristóteles. o que nos faz pensar no 11, abril de 1997.

Notas

* Licenciando em Filosofia na Universidade Federal da Fronteira Sul campus Chapecó. Contato: derocio_meotti@hotmail.com


1] HERÁCLITO, DK 22 B-49 e 91.


[2] PARMÊNIDES, DK 28 B-8 7-34.


[3] No século XX com o florescer da Filosofia da Linguagem esta diferença foi explicitada ainda mais. Um enunciado (proposição) só pode ser verdadeiro se o que ele descrever for o caso, ou seja, se o que ele enuncia tiver uma referência no mundo. Agora, para algo ser considerado um enunciado (ou proposição) ele deve poder ser ou verdadeiro, ou falso. Em outras palavras, é considerado um enunciado aquele conjunto de símbolos (proposição), cuja estrutura permite que se verifique se o que ela afirma é o caso ou não. Se o que o enunciado afirmar não for o caso, o enunciado será falso, mas isso não quer dizer que ele não tenha sentido, já que este, como dissemos acima, está diretamente ligado à possibilidade de verdade (ou falsidade) de um enunciado qualquer, e não à verdade da mesma.


[4] Apenas a título de advertência, não é totalmente justo dizer que o próprio Parmênides não entreviu este problema. Se prestarmos bastante atenção, como aponta Jean Beaufret, veremos que o poema, cujo nome é Sobre a Natureza (Περί Φύσεως), na segunda parte, sobre a opinião (δόξα), fala dos δοκοῦντα, que seriam um equivalente ao “reino dos seres da natureza, que são também os seres que parecem ser (δοκοῦντα)”. Estes seres, que no pensamento de Parmênides ganham um papel secundário, no de Heráclito são chamados de “ser”, enquanto que o que este chama de λόγος é o que Parmênides chama de ser (τὸ ἐόν, em contraposição ao não-ser: τὸ μὴ ἐόν). Entretanto, o próprio ser enquanto τὸ ἐόν é um desdobramento do εἶναι (ser), sendo que outro desdobrar são os τὰ ἐόντα (literalmente, “os seres”, nominativo plural do verbo εἶναι substantivado), que seria o equivalente aos “seres que são”, que estão em “constante mudança”, deixando de “ser o que são” (enquanto atributos) sem “deixarem de ser” algo que é, ou seja, que tem ser (τὸ ἐόν). Estes τὰ ἐόντα, enquanto manifestações (φαινόμενα) do ser (εἶναι), não são o ser verdadeiro (τὸ ἐόν), que é uno, imóvel e absoluto, mas apenas maneiras não-essenciais através das quais ele se manifesta. Para mais acerca dessa interpretação, cf. BEAUFRET, O Poema de Parmênides. In: PARMÊNIDES, DK 28 C-2, 1973, p. 161-198.






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