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Consequências éticas das narrativas da ficção científica

CONSEQUÊNCIAS ÉTICAS DAS NARRATIVAS DA FICÇÃO CIENTÍFICA

Derócio Felipe Perondi Meotti*

Muito se discute no meio acadêmico qual a relação entre ficção e realidade, e qual o papel da literatura na filosofia, e vice-versa. Há quem argumente, como Daniele Moyal-Sharrock, que ambas adquirem importância para nós quando percebemos que ambas figuram como apresentações estruturadas da vida. Essa apresentação não separa filosofia e literatura em polos dicotômicos, mas faz com que uma permeie a outra continuamente. Esse “permear” fica mais evidente quando percebemos que frequentemente a filosofia se usa de exemplos da vida para fazer-se clara e compreensível, enquanto a literatura, por sua vez, frequentemente se usa da filosofia para explicar e dar coerência a sucessão de fatos que surgem no decorrer da narrativa. Feita esta breve introdução, o que se pretende discutir aqui não é tanto a relação entre filosofia e literatura de forma ampla, mas apenas a relação que podemos estabelecer entre as narrativas de ficção científica e o comportamento ético do ser humano diante de inovações tecnológicas. Algumas obras apresentam-se como cânones para nossa análise, tais como 2001: uma odisseia no espaço, de Arthur C. Clarke, Duna, de Frank Herbert, Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, entre tantos outros clássicos que não poucas vezes previram avanços tecnológicos reais, mas também as atitudes do ser humano diante deles. Em 2001: uma odisseia no espaço, nos vemos imersos numa narrativa que descreve avanços tecnológicos que permitiram que o homem fosse mais longe no espaço do que em qualquer outra época anterior. As personagens, sendo parte deste cenário, têm que enfrentar dilemas morais que para nós, pelo menos por enquanto, se apresentam apenas no campo do possível, não do provável. Tais dilemas incluem a complicação das relações sociais que viagens em velocidades muito altas ocasionam, e até mesmo o problema de ter que lidar com a completa solidão no espaço interplanetário, sem nenhum auxílio em caso de problemas, sejam eles mecânicos, corporais ou mentais. Sobre o primeiro problema citado acima, o que ocorre é que em tais viagens, devido à relatividade do tempo observada por Einstein, as pessoas, ao retornarem ao local no qual a viagem teve início, o encontram completamente diferentes. Este efeito se deve ao fato de que, viajando em velocidades próximas à da luz, o tempo praticamente não passa para os ocupantes de tal espaçonave, enquanto que para os observadores no planeta do qual a nave partiu o tempo passa rapidamente. A consequência deste efeito é que, como foi demonstrado no Paradoxo dos Gêmeos, viagens no tempo tornam quase impossíveis relações entre pessoas e civilizações muito distantes entre si no espaço. O melhor exemplo para explicar tal problema talvez se encontre em Interstellar, filme de 2014 dirigido por Christopher Nolan e estrelado por Matthew McConaughey, Anne Hathaway e Jessica Chastain. No filme, a Terra se encontra em seus derradeiros momentos: fome generalizada, tempestades de poeira constantes, e mais uma série de problemas que cada vez mais rápido impossibilitam a vida no planeta. Neste cenário, a personagem Cooper (estrelada por Matthew McConaughey) tem a missão de liderar uma missão espacial em busca de outros astronautas que, antes dele, tinham ido buscar um novo lar para a espécie humana. Entretanto, como a viagem é feita em velocidades muito próximas à da luz, e muitas vezes a missão circunda perigosamente próxima de estrelas de nêutrons e outros corpos celestes que aceleram muito aqueles que estão em suas órbitas, o que acontece é que, enquanto que para Cooper passam-se apenas duas horas, na Terra passam-se cerca de 23 anos. Em meio à narrativa, lembramos que Cooper deixou sua filha infante na Terra, com a promessa de logo voltar, e vemos que ele desaba em lágrimas ao perceber que em apenas duas horas perdeu 23 anos da vida da filha, devido aos efeitos da relatividade. A história se desenrola deste modo até o final, tendo como pano de fundo as implicações da teoria da relatividade de Einstein, implicações estas que algum dia talvez enfrentemos, caso tais viagens próximas à velocidade da luz tornem-se realidade. Outro filme recente que nos coloca diante de tais dilemas ou situações inimagináveis é Melancholia, de Lars Von Trier. A obra não pode simplesmente ser encaixada entre os filmes de ficção científica convencionais, já que apenas pega elementos do gênero e os usa como pano de fundo para a narrativa central, cujo foco é no psicológico de duas irmãs: Justine e Claire. Entretanto, mesmo que tais elementos não sejam o foco central da narrativa, as irmãs se veem diante de um dilema: a colisão de um planeta com a Terra é inevitável, e simplesmente não há para onde correr. O que fazer? A atitude de Justine é aceitar quase estoicamente o fato, enquanto que Claire, cada vez mais angustiada, acaba cedendo lugar ao desespero. A astrofísica atual se sai relativamente bem identificando corpos grandes que adentram no sistema solar “apenas de passagem”, calculando com precisão assustadora a trajetória que tais corpos descreverão. Até então, nada parecido com o planeta-invasor Melancolia foi detectado, mas isso não significa que tal coisa não seja possível. Porque é. Apenas torçamos para que nunca aconteça. O que se percebe ao lidarmos com obras de ficção científica é que elas não se arrogam o título de verdades científicas, mas apenas fazem uso de possibilidades científicas que no momento da escrita da narrativa ainda não são possíveis na prática, como no caso da viagem à Lua em Da Terra à Lua, de Júlio Verne, viagem que nas décadas de 60 e 70 tornou-se praticável graças a avanços tecnológicos. O que é importante, como disse Asimov, são as reflexões e dilemas que a ficção científica nos proporciona. Tais dilemas ainda não existem na nossa realidade científica enquanto obstáculos reais, mas apenas como possibilidades. Não podemos prever o futuro da tecnologia e quais novas ferramentas ou descobertas ela nos dará, mas podemos construir uma narrativa no qual tal descoberta ou ferramenta já se constitui como realidade, e a partir disso investigar os dilemas éticos que o ser humano encontra diante delas. Este aspecto salta os olhos ao lermos Duna, de Frank Herbert, ou Encontro com Rama, de Arthur C. Clarke. No primeiro, nos deparamos com uma galáxia dominada pela raça humana, na qual cada planeta habitável atua como uma espécie de feudo em um vasto império. Neste cenário, em um destes planetas, é encontrada uma especiaria que expande as capacidades sensoriais da espécie humana, fazendo com que a mente consiga lidar com mais informações do que normalmente, o que possibilita que, a partir de tais dados, o indivíduo consiga reconstituir o passado com precisão, ao mesmo tempo em que também consegue prever uma considerável parte do futuro. É evidente que isso é uma espécie de determinismo, mas não cabe à nossa exposição entrar nesse mérito. O que é importante é que, diante de tal possibilidade, a humanidade passa a enfrentar problemas éticos e políticos que até então não eram problema para ninguém, porque impraticável. Devemos notar aqui a importância da diferença entre impossível e impraticável. Não negamos que a existência de uma especiaria que expanda as capacidades sensoriais exista, mas, dada ausência de evidências, permanece improvável que exista. A ficção científica faz uso daquilo que a ciência tem apenas como possível, e parte do pressuposto que este possível não só é também provável, como também já faz parte do contexto da narrativa, ou seja: é algo dado em uma estruturação fictícia da realidade. O mesmo procede em Encontro com Rama, no qual os personagens, ao fazer contato com uma forma de vida inteligente de fora do sistema solar, enfrentam o seguinte dilema ético: atacamos primeiro, partindo do pressuposto que eles sejam hostis, ou esperamos que nos ataquem primeiro, partindo do princípio que são pacíficos, para só então iniciar uma ofensiva? Na nossa realidade científica atual, ainda não fizemos nem contato com outras raças alienígenas, nem muito menos encontramos especiarias que expandam a capacidade sensorial do mesmo modo que foi descrito em Duna. O que estas obras fazem é colocar personagens diante de dilemas morais que não enfrentamos, dilemas estes que são possibilitados não por absurdos da ficção, mas por uma estruturação fictícia que é coerente com aquilo que a ciência nos ensina e com o critério que ela nos fornece.


REFERÊNCIAS

Referências bibliográficas

CLARKE, Arthur Charles. Encontro com Rama. São Paulo. Aleph, 2010.

CLARKE, Arthur Charles. 2001: uma odisseia no espaço. São Paulo. Aleph, 2013.

HERBERT, Frank. Duna. São Paulo, Aleph, 2010.

Referências filmográficas

Interstellar. Dirigido por Christopher Nolan. Produzido por Christopher Nolan, Emma Thomas e Lynda Obst. Duração: 169 min. EUA e Reino Unido: Paramount Pictures & Warner Bros, 2014.

Melancholia. Dirigido por Lars Von Trier. Produzido por Zentropa. Duração: 136 min. Dinamarca: Nordisk Film, 2011.

Notas

* Acadêmico de Filosofia na Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Chapecó. E-mail para contato: derocio_meotti@hotmail.com

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O projeto "Cultura Pensante" é um movimento criado por integrantes do Centro Acadêmico de Filosofia (CAFIL) do Campus Chapecó da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), vinculando-se a este órgão representativo, com o objetivo de criar e divulgar cultura.  O projeto engloba, de um lado, a criação e divulgação e atividades culturais, e, de outro, a divulgação a um público externo da síntese dos conhecimentos construídos pelo projeto por meio da revista digital sediada nesse espaço.

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