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A relação entre a cosmologia e a origem do mal nas Leis de Platão

A RELAÇÃO ENTRE A COSMOLOGIA E A ORIGEM DO MAL NAS LEIS DE PLATÃO

Derócio Felipe Perondi Meotti*

RESUMO Mesmo com a diferença de prioridades que Platão estabelece na República e nas Leis, uma coisa se mantém a mesma: o conhecimento do Bem como parâmetro para a formulação de leis boas e justas. O problema surge quando constata-se que, num nível cósmico, não só o bom e o justo parecem provir deste Bem, mas também o mau e injusto. No decorrer do texto, mostrarei como Platão mostra que o Bem pode ser origem das coisas boas e também das almas que praticam o mal, sem ser o responsável por este último. Para tanto, elucidarei como Platão introduz a ideia de uma alma automovente governando o cosmos e a divisão do governo do universo em pequenas partes, estas governadas por cada alma como se fossem arcontes.

Palavras-chave: Platão. Origem do mal. Leis. Alma automovente.

Introdução

Desde os primórdios da civilização, o ser humano tentou, das mais diversas formas, organizar-se de modo que tal organização permitisse que tais indivíduos vivessem bem e em segurança. Para tanto, várias formas de condutas e transmissão de costumes foram desenvolvidas com o passar do tempo, e na Grécia antiga não poderia ter sido diferente. Porém, sempre que tentou-se estabelecer uma forma de transmissão de valores comuns a todas as pessoas, tais tentativas encontraram vários obstáculos. Entre os problemas que a transmissão de tais valores enfrenta está a dificuldade de fundamentá-los de forma coerente e suficiente, de modo que venham à luz o mínimo de contradições possível. À luz de tal fato, Platão desenvolve em sua época um sistema de transmissão de valores que se fundamenta no conhecimento do Bem (᾿Αγαθός), conhecimento este que, uma vez atingido, serviria de parâmetro para saber distinguir o que é certo do que é errado, o que é justo do que é injusto, o que é bom do que é mau, e assim por diante. Na República, considerada uma das obras mais importantes do filósofo ateniense, Platão propõe a construção de uma cidade na qual a sabedoria, a coragem, a temperança e a justiça são os pilares de sustentação[1], os alicerces que permitem que a cidade (πόλις) seja uma cidade boa e feliz (Καλλίπολις). O trabalho de construir esta cidade boa e feliz é de cada cidadão na medida em que lhe é permitido avançar nos níveis de instrução e conhecimento, tendo-se como o ápice dessa instrução o conhecimento das ideias (εἶδος) e, consequentemente, o conhecimento daquilo que as sustenta, que é em última análise o conhecimento do Bem. Possuindo o conhecimento do Bem, o sábio que é amigo do saber (φιλόσοφος) seria aquele que governa a cidade, tendo abaixo dele sábios que ainda não atingiram o nível excelente do conhecimento, estes sendo responsáveis por administrar a cidade e também educar as crianças, iniciando-as nos conhecimentos iniciais necessários para o bom desenvolvimento dos cidadãos da cidade. Abaixo dos administradores viriam os guardiões e os artesãos. Nesta categoria estão todos aqueles responsáveis – respectivamente – pela ordem interior da cidade e também pela defesa contra inimigos externos, e aqueles responsáveis por prover a cidade no que diz respeito a utensílios, ferramentas, alimentos, serviços, entre várias outras incumbências necessárias para o bom funcionamento da cidade. Porém, o que Platão deixa em segundo plano na República é o papel das leis. Como em sua cidade boa e feliz (Καλλίπολις) reinariam o conhecimento do Bem e a boa educação do cidadão para que se torne virtuoso devido a este conhecimento, o caráter normativo de um conjunto de leis acaba assumindo um papel um tanto quanto desnecessário, já que cada cidadão saberia o que é certo, justo, bom, belo, e também os seus opostos. Porém nas Leis – escrita aproximadamente 30 anos após a República – Platão retoma a discussão acerca de como o conhecimento do Bem pode fazer com que a cidade justa se concretize. Entretanto, se na República Platão confiava essa construção à boa instrução dos cidadãos no conhecimento do Bem, nas Leis esse foco deixa de ser – pelo menos prioritariamente – a instrução dos cidadãos no conhecimento do Bem e passa ser a instrução dos cidadãos no bom conhecimento das leis. Deste modo, para Platão não é mais prioridade fazer com que os cidadãos da cidade saibam o que é o certo e o errado, o justo e o injusto, o bom e o mau — apesar de esta pretensão não ser abandonada em momento algum, evidentemente —, mas passa a ser de extrema importância que os cidadãos não só cumpram as leis, mas que também saibam de onde ela provém e, mais importante, o porquê de ser tal lei uma lei justa. No decorrer das Leis Platão desenvolve sua tese em cima desta prerrogativa, mostrando que a lei da cidade – no caso, da boa cidade – é justa porque quem a promulgou foi alguém – o ou os filósofos governantes – que alcançou o conhecimento do Bem e, portanto, tem um parâmetro para analisar o que é justo e injusto, bom e mau, certo e errado, e também pode, portanto, fazer leis com base nesses juízos. Feita esta breve introdução do contexto das Leis e suas diferenças principais com relação à República, podemos introduzir aqui o problema que surge em decorrência do aspecto que sustenta ambas as obras: o conhecimento do Bem e o que dele deriva. Descrever como o conhecimento do Bem é obtido não é relevante neste trabalho, já que tal tema está mais propriamente voltado para o campo epistemológico do que para o ético-político. Porém, é necessário fazer algumas considerações antes de introduzirmos o problema que é a origem do mal na tese platônica e como Platão o desenvolve no Livro X das Leis. Primeiramente, deve-se levar em consideração em que consiste o conhecimento do Bem. Para Platão, o Bem é “A Ideia” que sustenta todas as outras ideias – ou essências, formas, etc – e que confere realidade sensível a elas (PLATÃO; A República; 2010; VII, p. 319, 517-b). Na “escala” platônica da realidade, a realidade sensível – plano sensível – estaria no nível mais baixo, representando uma espécie de cópia (μίμησις) de uma ideia (plano inteligível) que estaria em um nível mais alto de realidade efetiva. Como o Bem é a ideia que sustém e confere unidade a todas as outras ideias, sua realidade efetiva deve ser maior do que a das outras ideias. O que isso implica é o seguinte: se toda a realidade – tanto no plano sensível quanto no plano inteligível – provém do Bem enquanto realidade efetiva, não só o certo, o justo, o belo e o bom proviriam dele, mas também o errado, o injusto, o feio e o mau. Deste modo o que se tem é que o Bem, enquanto “alma cósmica”, não só conferiu realidade às coisas boas e justas, mas também às más e injustas. Ou seja, o Bem é também a origem do mal. Deste modo, como considerar o Bem como algo bom? Como usar o Bem como parâmetro para a criação de leis, quando deste mesmo Bem provém também as coisas más? No Livro X das Leis Platão se propõe a resolver este problema mostrando como o Bem pode ao mesmo tempo conferir realidade a coisas boas e à almas que praticam o mal, sem necessariamente ser responsável pelo mal praticado. Para tanto ele explora exaustivamente a prioridade da alma em relação ao corpo, mostrando que enquanto o corpo é desprovido de movimento próprio, não pode ser ele o responsável pelo desenrolar dos movimentos no universo (κόσμος). Mostrando que o corpo não pode ser responsável pelo seu próprio movimento por si só, Platão introduz a ideia de que apenas a alma (ψυχή) pode mover um corpo, e para isso deve ser automovente. Portanto, deve ser uma alma automovente aquilo que deu início a todo o universo e seu movimento. Provando esta tese, Platão mostra que os deuses[2] — o Bem —, mesmo que tenham dado início ao desenrolar do universo e confiram realidade tanto ao bem quanto ao mal, não são responsáveis por este último. Isto ele explica mostrando que cada alma é responsável pelo “seu quinhão” no universo, como se fosse uma espécie de arconte (ἄρχοντες) do “seu lugar” enquanto “uma alma entre tantas outras almas”. Nas Leis, Platão diz


Convençamo-lo também com argumentos de que aquele que governa o universo tem todas as coisas ordenadas de acordo com a preservação e a excelência do todo, enquanto que cada uma de suas partes se limita a ser sujeito ou objeto, segundo suas possibilidades, daquilo que é propriamente seu. E cada uma destas partes, até na mais pequena escala, têm em cada ato ou experiências governantes encarregados de realizar um perfeito acabamento, inclusive nas partes mais ínfimas. (Leis, X 903b).[3]


O objetivo deste trabalho é mostrar como Platão, no livro X das Leis, prova que não é o Bem o responsável pela origem do mal, mas sim o próprio ser humano[4] – enquanto arconte ou governante de uma pequena parte do universo – que é o responsável por ela. Para demonstrar isso de modo claro e conciso, desenvolverei meu argumento a partir dos seguintes pressupostos: 1) Mostrar como o caráter automovente da alma garante sua prioridade com relação ao corpo e, portanto, que deve ser uma alma cósmica automovente aquela que governa o movimento do universo; 2) Mostrar como a ou as almas que governam o universo não o governam em sua totalidade, mas delegam a cada alma uma pequena parte, onde as almas atuam como arcontes. Desenvolvidos estes dois pontos, tentarei mostrar como o Bem – enquanto o que confere realidade – não pode ser responsabilizado pelo mal no universo e, portanto, pode servir como parâmetro para a formulação de leis justas sem com isso cair em contradição.


I. A prioridade da alma com relação ao corpo


Como dito anteriormente, para Platão é imprescindível demonstrar que a alma tem prioridade com relação ao corpo, para depois provar que a origem do mal não pode ser imputada ao Bem. Isto se deve ao fato de que na antiguidade vigorava a ideia de que apenas corpos dotados de alma podiam mover a si mesmos, o que torna todos os demais corpos apenas uma “matéria inerte”, sendo movida por algum corpo dotado de alma, como quando por exemplo um ser humano manuseia um martelo.

Porém, ao explicar como um corpo – como por exemplo, o martelo – é movido, podemos sem problemas colocar um ser humano como origem de seu movimento. Já o mesmo não pode ser feito quando pensamos em um universo material em escalas cósmicas. Isto se dá porque não se pode postular o homem como origem do movimento no universo, já que não só de acordo com a teoria da evolução darwiniana, mas também de acordo com a mitologia grega, o homem não foi o primeiro ser dotado de alma a habitar o universo, nem aquele que o criou, nem aquele que o governa. O problema que se apresenta aqui é o seguinte: é o universo e seu movimento desgovernado ou é ele guiado por uma espécie de alma cósmica? Em outras palavras: no que tange à causa primeira (πρώτη γένεσις) do universo, tem ele um propósito (τέλος) dado por uma ou mais almas que o governam, ou é ele “guiado” por uma espécie de acaso pela necessidade? Em A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas Carone diz que


Para provar a existência de deus, Platão faz o Ateniense envolver-se numa discussão sobre a natureza da primeira causa. Qual é o princípio explicativo primário do universo? De acordo com seus opositores materialistas, é o acaso (tychê, 889a5, b2) ou o acaso pela necessidade (tychê ex anankês, 889c1-2) governando o movimento, a colisão e a mistura de forças corpóreas opostas que deu origem aos corpos celestes e ao universo em geral (889a-c). Dentro desse quadro, o corpo precede à alma e a quaisquer propriedades mentais, que se diz que surgiriam “posteriormente” (891c). Na medida em que esses princípios são destituídos de inteligência e planejamento, a postulação deles proporciona, aos olhos de Platão, apoio científico ao ateísmo. O Ateniense pretende atacar tais teorias estabelecendo, inversamente, a prioridade da alma sobre o corpo “por natureza”. Como compreenderemos a natureza (physis)? Aqui a preocupação é menos com a natureza como resultado de um processo de desenvolvimento do que com a natureza como a fonte deste processo. (CARONE; A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas; 2008; p. 242).[5]


Se assumirmos que o universo é guiado por um acaso pela necessidade (τυχὴ ἐξ ἀνάγκης), logo inferimos que este acaso pela necessidade que guia o universo o “governa” em um movimento já determinado por suas condições materiais, sendo a origem desta relação de causa e efeito um acaso no “início” do universo. O que esta linha de pensamento pressupõe é que todas as coisas já são determinadas pelo acaso inicial, e que, neste caso, não há espaço para escolher entre o bom e o mau, entre o justo e o injusto, e etc, já que não há um Bem como fundamento (ἀρχή) para o universo. Ou seja: mesmo que após o “caos inicial” surjam almas dotadas de automovimento, o surgimento destas almas teria como fundamento uma determinação anterior a elas. Neste caso, todas as ações seriam pré-determinadas; ou seja: basta ao indivíduo em questão ter conhecimento de todas as variáveis que estão em jogo no momento da escolha moral para saber qual escolha ele fará. O que se assume com isso é que todo movimento no universo provém de uma relação de causa e efeito, e Platão percebe que há uma contradição evidente nesta afirmação: se afirma-se esta hipótese, pressupõe-se que todo movimento no universo é mecânico, e o movimento mecânico sempre pressupõe que corpos não podem mover a si mesmos por conta própria, mas apenas ser movidos por outros e, do mesmo modo, mover outros corpos por causa do movimento que anteriormente fora neles imprimido (Leis X 894b8-9). Como argumenta Carone,


A próxima etapa no argumento [de Platão] é estabelecer a prioridade do automovimento sobre o movimento mecânico. Isto é afirmado com base no fundamento de que todo encadeamento de movimento deve parar num primeiro motor. Não pode, por definição, ser o tipo de movimento que, por sua vez, foi movido por alguma coisa mais (cf. 894e4-7). (CARONE, A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas; 2008; p. 243; o que está entre colchetes foi acrescido por mim).[6]


Ao assumirmos que esta linha de pensamento defendida pelos opositores materialistas de Platão é a que descreve verdadeiramente o modo como o universo é guiado, jogamos por água’baixo toda a tese platônica referente à justiça, ao bem, ao belo, e etc. Isto porque não faz sentido pensar em fazer leis justas ou ensinar as pessoas a escolher o bem em detrimento do mal, o justo em detrimento do injusto, se todas essas escolhas já forem de alguma forma determinadas no momento da escolha ou se não houver um Bem – enquanto alma cósmica – que não só fundamente tudo o que existe, mas que sirva de critério para conhecer o que é bom, justo e etc. Neste caso, a única coisa que o filósofo pode fazer é sentar e esperar que as coisas se desenrolem do modo como foram determinadas. Esta forma de pensar pressupõe um certo caráter arbitrário às leis da cidade que Platão almeja construir no seu discurso. Sobre esse aspecto, Carone diz que


O livro X das Leis começa precisamente como uma tentativa de refutar teorias da natureza segundo as quais esta não só é privada de normatividade, como até se opõe a ela. A grande divisão entre norma e natureza, ou nomos e physis, que fora defendida por diversos sofistas, recebe agora apoio científico, acredita Platão, de teorias segundo as quais o universo opera por meio do acaso e não do nous, de maneira que a lei, ou qualquer resultado da inteligência, não passa de um fantasma humano ou criação mortal, algo que nada tem a ver com o modo como as cosias são. (CARONE, A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas; 2008; p. 240).


É por este motivo que Platão tem que demonstrar que o universo é governado por uma alma cósmica que o guie, e mais: não só tem que provar que é uma alma que o guia, mas uma alma boa, racional (νοῦς). Este aspecto da alma boa ou má será abordado mais adiante no texto, mas por ora não é necessário para elucidarmos o aspecto de prioridade da alma com relação ao corpo. O que Platão acusa em seus opositores materialistas é que o universo deve ser governado por uma alma, já que todas as coisas ou são 1) automoventes por possuírem uma alma, ou 2) movidas por outras coisas, podendo ser esta causa do movimento ou outras “matérias inertes”, ou corpos dotados de almas. O que isto implica é que o universo, se em seu início fosse apenas matéria inerte movida ao acaso, entraria em contradição com a própria ideia de corpo defendida pelos materialistas, porque ela não explica suficientemente de que modo o movimento no universo teve início. É contraditório dizer que um corpo específico ao acaso – diferentemente de todos os demais —, contrariando sua natureza e dotado de movimento próprio, acidentalmente iniciou o movimento e, portanto, a geração e a corrupção no universo. É por este motivo que para Platão parece mais sensato propor a existência de uma alma cósmica guiando o universo. Entretanto, para isso ele precisa provar a prioridade da alma com relação ao corpo e também do automovimento com relação ao movimento mecânico, para que ela – a alma cósmica— possa ser a causa do movimento no início do universo. Como Platão faz isso? Ele propõe que o universo deve ser guiado por uma alma cósmica, que por ser uma alma, é automovente. No livro X das Leis Platão questiona:


Lhe digo: se é assim, teremos que buscar outra demonstração mais adequada de que a alma é assim mesmo a primeira origem de movimento de todas as coisas que existem, existiram, haverão de existir e também de seus contrários, já que se nos mostra como causa de toda mudança e movimento em todos os seres? (Leis X 896a7-8).[7]


E mais adiante, também o Ateniense – personagem que fala por Platão na obra – diz:


Não será necessário reconhecer que a alma é a causa de todos os bens e de todos os males, do bonito e do feio, do justo e do injusto, bem como da totalidade de contrários, já que a postulamos como causa de tudo? (Leis X 896d5-9).[8]


Uma alma cósmica automovente resolveria o problema que surge na teoria materialista, já que um corpo, sem ser dotado de alma – vide o exemplo do martelo – não pode mover a si mesmo, mas um homem, por ser dotado de alma, pode mover o martelo e a si mesmo. O que move o corpo do homem não é seu corpo em si, mas sua alma, que tem a capacidade de mover as coisas – ou seja, o corpo do homem – sem necessariamente precisar ser movida por algo anterior a ela na relação de causas e efeitos. Isso por que, segundo Platão, enquanto os corpos inanimados têm a origem de seu movimento exterior a si próprio, a alma – ou os corpos animados — tem a origem de seu movimento em seu interior. Em determinado momento do livro X, Platão argumenta:


Consideremos, pois, um certo movimento que pode sempre mover a outras coisas, mas não pode mover a si mesmo; e outro que pode sempre mover-se a si mesmo e também as outras coisas por misturas e separações, aumentos e diminuições, gerações e destruições; e seja este último, por sua vez, um tipo distinto na totalidade dos movimentos. (Leis X 894b7-13).[9]


Ou seja: há um tipo de movimento que pode sempre mover outras coisas, mas não a si mesmo, e outro que pode mover tanto a si mesmo quanto outras coisas. Este outro movimento é o automovimento, ou movimento da alma, que tem a origem do movimento em si mesma, ou seja: interna. Nas páginas anteriores ao trecho citado acima Platão define a alma como “o movimento que pode mover a si mesmo (Leis X 896a1-2)[10], o que parece pressupor um acordo tácito com o leitor no que diz respeito à origem interna do movimento da alma. Para provar que a alma tem prioridade com relação ao corpo, Platão argumenta que


Quase todos os homens, meu amigo, parecem desconhecer a alma, como ela é e o poder que tem; e, entre outras coisas relativas a ela, seu nascimento: isto é, que nasce entre os primeiro seres e é anterior a todos os corpos e governa em princípio toda mudança e toda nova ordenação destes. Sendo deste modo, não resulta necessário também que as coisas congêneres à alma tenham nascido antes que aquelas pertencentes ao corpo, sendo ela mais antiga que o próprio corpo? (Leis X 892a2-10).[11]


Com efeito, fica implícito que, se a alma tem prioridade com relação ao corpo por ser automovente, a causa primeira do movimento no universo – ou seja, de geração e corrupção — deve ser uma alma cósmica automovente[12]. Porém, provando isso, outro problema, talvez de maiores proporções, surge para Platão: se uma alma automovente é responsável pelo movimento no universo, prova-se apenas que há uma alma que o guia, mas não sabemos se essa alma é boa, má, ou até mesmo irracional – o que implicaria num movimento desgovernado no universo. Dependendo de qual das três alternativas usarmos como resposta para tal pergunta, o universo ou continua sendo governado por uma espécie de necessidade irracional – desgovernada –, ou é governado por uma alma boa e/ou má[13], o que torna complicado para Platão explicar como o conhecimento do Bem deve ser tomado como critério para a criação de leis boas e justas, já que deste mesmo Bem derivariam – por consequência do argumento – também as coisas más e injustas. O que se tentará mostrar na próxima seção é como Platão prova que a alma que governa o universo deve ser boa, e depois como esta alma boa não pode ser responsável pelo mal no universo. Para tanto introduziremos a ideia de que cada alma governa sua parte do universo como se fosse um arconte, para então explicar a origem do mal.


II. A origem do mal num universo governado por uma alma cósmica boa


Como se quis demonstrar no capítulo anterior, se a alma tem prioridade com relação ao corpo por ser automovente, o início do movimento no universo deve ter como origem uma alma automovente, ou uma alma cósmica. Esta prioridade não precisa necessariamente se dar cronologicamente, como se disséssemos que “a alma surgiu no tempo antes do mundo físico”, mas sim uma prioridade no que diz respeito ao início do movimento que deu origem à geração e corrupção – vir-a-ser e deixar-de-ser – de todas as coisas. Como já explicado[14], esta alma não é independente do universo físico, diferindo do corpo apenas nos dois aspectos citados na mesma nota, o que afasta Platão de um possível dualismo. O problema que surge ao postularmos uma alma cósmica como aquela que governa o universo é: esta alma é boa? É ela má? E se não for nem uma nem outra, mas for indiferente? É uma alma ou são muitas? É possível que, se mais de uma alma governa o universo, seriam elas divididas entre almas boas e más, lutando por esse governo? No decorrer deste capítulo tentaremos responder a estas perguntas da forma mais clara possível, tentando eliminar toda dúvida que possa pairar sobre a tese platônica do Bem como fundamento para a lei boa e justa. Seguindo a ordem proposta no parágrafo anterior, tentaremos responder à primeira pergunta, que pode ser formulada da seguinte maneira: assumindo-se que de fato há uma alma automovente que governa o universo – ou uma alma cósmica -, esta alma é boa ou má? Para responder a esta pergunta, vamos desconsiderar por ora o fato de que podem ser uma ou mais almas governando o universo, que será retomado mais adiante. Neste contexto, ao perguntarmos por uma alma ou boa ou , antes devemos nos perguntar se é uma alma racional (νοῦς) ou uma alma irracional (ἀνόια) que governa o universo. No livro X das Leis, Platão diz que


[…] se a marcha e translação geral do céu e dos quantos seres que nele há é de índole semelhante no que diz respeito ao movimento, revolução e raciocínio da inteligência, e se encaminha-se de maneira semelhante, não haverá dúvida em afirmar que é a melhor alma que cuida do mundo todo e o conduz por tal caminho. (Leis X 897e5-10).[15]


Deste modo, como diz Carone, “não seria piedoso declarar qualquer coisa exceto que é a alma que é repleta de toda virtude que dirige a inteira revolução do universo (CARONE; A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas; 2008; p. 257)”. Esta conclusão derivada da tese platônica presente nas Leis faz com que desde já concluamos que deve ser uma alma racional a governar o universo, já que ele e seu movimento são ordenados. Entretanto, mesmo que – segundo a tese platônica – tenha se provado que a alma que governa o universo é racional, ainda não podemos saber se ela é boa ou má. Isto se deve ao fato de que continua a ser ela a fonte – ou origem – tanto das coisas boas como das coisas más. O que Platão precisa mostrar é que a alma cósmica não é fonte das coisas boas e más, mas apenas das boas, e que a fonte das coisas más é outra. Ou seja: é imprescindível para o filósofo ateniense provar este ponto, já que se a alma cósmica for de certa maneira indiferente – ou seja, fonte tanto do bem quanto do mal —, ela não pode ser tomada como o mesmo que “O Bem”, sendo este Bem – segundo Platão – o critério para a formulação de leis boas e justas. Nas Leis ele diz que,


Ou talvez seja que, ao ver homens que atingem a velhice em meio às maiores honras, deixando atrás de si os filhos dos seus filhos, te perturbas então ao comprovar em todos esses casos, ou porque conhece boatos, ou porque tem visto de modo inegável a si mesmo como testemunha de alguns dos muitos crimes e prevaricações que se produzem, que é precisamente graças a estes mesmos que eles, saindo de lugares humildes, chegaram até as tiranias e aos mais altos cargos; e então se faz evidente que todas as coisas assim são o motivo pelo qual você, sem querer, em virtude da semelhança, acusa os deuses de serem culpados por estas ações, e é impulsionado também pela falta de senso, justamente com essa repulsa, a revoltar-te contra os deuses, tendo chegado agora a essa situação em que acredita que eles existem, mas também que desprezam e não se interessam pelos negócios humanos. (Leis X 899e4-900b5).[16]


Carone diz que “se o universo está nas mãos de algum poder controlador, assim pensam, ou esse poder é responsável pelo mal, ou então não pode ser do tipo que proporciona zelo (CARONE; A Cosmologia de Platão e suas dimensões éticas; 2008; p. 252)”. É por isso que para Platão provar a existência dos deuses e provar a existência de uma alma cósmica racional é tão importante quanto provar que esta alma cósmica zela pelo bem humano. E, retomando o problema anterior, quando dissemos que por ora não era necessário abordar o problema da multiplicidade de almas boas ou más, não daremos ênfase neste aspecto porque o que Platão parece buscar é qual estado da alma — νοῦς ou ἀνόια – prevalece no universo como um todo (CARONE; A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas; 2008; p. 256). A dificuldade consiste em provar que esta alma racional, que parece prevalecer no universo como um todo e que governa seu movimento é uma alma boa. Para isso o filósofo ateniense não precisa negar que há um tipo de “alma má” no universo – coisa que ele de fato não faz —, mas precisa mostrar que não é um tipo de alma má que o governa, e sim uma boa. Retomando o trecho do livro X que usamos no começo deste capítulo, Carone diz que


Se todo o curso e o movimento do céu e todas as coisas nele contidas estão aparentados ao movimento, à revolução e a cálculos da razão – isto é, se é regular (kata tauta, hôsautôs), no mesmo lugar, em torno do mesmo ponto e na mesma direção (pros ta auta), de acordo com uma única proporção e ordem (logon kai taxin) 898a8-b1 – então é a melhor alma que conduz e cuida do cosmos inteiro. Se, pelo contrário, o movimento do universo é louco e desordenado (manikôs kai ataktôs), é a alma má (897c4-d1). (CARONE, A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas; 2008; pp. 256-257).


É evidente que este trecho praticamente repete o que se disse anteriormente com o trecho das Leis, mas é importante ligá-lo a outro trecho da análise da autora, que diz o seguinte:


O que a conclusão claramente mostra é que não é uma alma má (mas um tipo excelente de alma) que governa o universo, tomado como o sistema astronômico total (ou “circuito celeste”, ouranou periphora, 898c3). Assim, os movimentos loucos e desordenados sob o efeito de uma alma má descritos no texto (897d1, cf. 898b5-8) só poderiam ser aplicados ao universo contrafactualmente: mostram como o universo seria se não fosse deus ou um tipo bom de alma que o guia. (CARONE, A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas; 2008; pp. 257-258; o bom em itálico foi acréscimo meu).


Isso parece corroborar a tese platônica de que a alma cósmica deve ser uma alma boa, caso contrário o movimento no universo seria caótico – ou desordenado —, e portanto, incompreensível ao intelecto. Porém, é aqui que o problema se transforma numa espécie de paradoxo que pode ser descrito em três proposições:


1. O universo é governado por uma alma boa que é a origem do movimento – geração e corrupção – de todas as coisas. 2. Esta alma, por ser boa, não pode originar o mal no universo. Logo, não deveria haver mal no universo. 3. Há mal no universo.


A contradição é bem evidente: se uma alma boa é origem de todo o movimento, não deveria haver mal no universo. Porém, há mal, portanto, deve ser esta “alma boa” a origem também do mal[17]. Para não desdizer aquilo que estabeleceu como o “princípio dos opostos”[18], Platão tem que buscar a fonte deste mal em algo diferente da alma cósmica que governa o universo. É neste momento que surge a ideia de que cada alma – como por exemplo: cada alma humana – é responsável pela parte que lhe cabe do universo, e a governa como se fosse uma espécie de arconte. Em outras palavras, o universo como um todo é governado por uma alma cósmica boa, que confere realidade – ou seja, é fonte - de todas as coisas boas e também daquelas coisas que podem escolher praticar o mal ou não. Cada alma individual, por também ser automovente[19], tem a plena liberdade de fazer um bom ou mau uso das coisas boas que existem no universo, coisas boas estas que existem graças à alma cósmica, que enquanto fonte deste movimento de geração e corrupção, governa o universo (κόσμος).

É, portanto, desta liberdade para fazer um mau uso das coisas boas que surge o mal no universo, que não é um mal de caráter ontológico, mas um mal no sentido de privação de bem, como mais tarde dirá Santo Agostinho em O livre-arbítrio. Quem é livre para fazer mau uso é cada alma individual[20]. Isto se deve porque o caráter de bom que cada coisa no universo possui não é nada além de uma espécie de “potencialmente bom”, que, se usado corretamente – ou seja, de acordo com a razão —, pode dar o melhor uso às coisas boas que nele existem. Deste modo, se as coisas boas no universo são boas por que possuem uma espécie de “melhor uso”, a alma cósmica – ou deus – ganha um novo caráter que cada vez está mais de acordo com a tese platônica. Deste modo, deus ou a alma cósmica não são uma espécie de deus ex machina, que está além do universo físico, mas


Está claro que esse deus, na prática real, não é outro senão aquele a favor de cuja existência se argumentou anteriormente, isto é, o deus cósmico ou, mais concretamente, o próprio universo orgânico como um sistema auto-regulador. (CARONE; A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas; 2008; p. 267).


Deste modo, esta alma cósmica a governar o universo, que agora podemos tomar pelo Bem, atua exatamente como critério não apenas para fazer um melhor uso das coisas boas, mas também como critério para a criação de leis boas e justas, que visam a obtenção dos melhores prazeres e também o melhor uso que se pode dar às coisas naturalmente boas do universo. É por isso que tanto na República quanto nas Leis Platão dá tanta ênfase a este aspecto, já que se na primeira obra seu objetivo era fazer como que cada cidadão tivesse esse conhecimento – do Bem —, na segunda seu objetivo se torna mostrar por qual motivo é justo e bom seguir leis justas e boas, já que elas foram formuladas usando como critério este conhecimento do Bem, que torna possível conhecer o que de melhor se pode tirar de tudo o que universo dispõe. Por consequência do argumento, parece que Platão nos dá indícios de que nós, enquanto cada alma individual, participamos ativamente do governo do universo, assim


Tudo quanto fazermos é refletido no cosmos e o afeta e, por sua vez, desencadeia consequências cósmicas a ele destinadas que também nos afetam. Por esse ponto de vista, a ética se torna inseparável da cosmologia, e a investigação do universo resulta numa ampliação do entendimento de nós mesmos. (CARONE; A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas; 2008; p. 277).


Quando percebemos a amplitude da cosmologia e suas dimensões éticas nas Leis de Platão, torna-se claro por qual motivo Platão enfatiza tanto a importância de assumirmos responsabilidade (αἰτία) como governantes (ἄρχοντες) das partes (μωρία) que nos foram aquinhoadas neste complexo universo, como que partilhemos também com a alma cósmica o governo não só de nossa parte, mas também do sistema inteiro[21].


Considerações finais: o Bem como critério para a lei boa e justa


Como se intentou demonstrar no início do texto, provar que é uma alma cósmica boa a governar o universo é algo de fundamental importância para a manutenção da coerência da tese platônica do Bem como critério para a formulação de leis boas e justas. Na primeira parte do desenvolvimento mostramos como deve haver uma alma cósmica automovente na origem do movimento de geração e corrupção de todas as coisas, já que apenas uma alma pode mover outras coisas sem precisar ser movida por alguma outra coisa anteriormente na relação de causas e efeitos. Deste modo, provado que para Platão deve ser uma alma cósmica deste tipo – automovente – que deu origem ao movimento das coisas no universo, fez-se necessário provar que esta alma cósmica é uma alma boa, e também que o mal no universo não se origina dela.

Na segunda parte do texto, mostrou-se como deve ser uma alma boa a governar o universo, e como – usando como base a “teoria dos opostos” e a ordem no universo – esta alma deve ser apenas origem das coisas boas e de coisas que, por serem livres para escolher, podem escolher praticar o mal, mas sem responsabilizar a alma cósmica por ele. Dizendo que a origem do mal está no mau uso que as almas individuais dão às coisas naturalmente boas, Platão diz que a responsabilidade pelo mal cabe a estas almas, e não à alma cósmica que é a fonte tanto das coisas boas quanto das almas individuais, sendo estas almas individuais também dotadas de automovimento ou, em outras palavras: livre-arbítrio. Se esta alma cósmica é o Bem e não é origem do mal, o Bem pode, sem contradição, ser o critério com o qual os legisladores formulam leis boas e justas.



THE RELATION BETWEEN COSMOLOGY AND THE SOURCE OF EVIL IN THE PLATO'S LAWS

ABSTRACT Even with the difference of priorities that Plato establishes in the Republic and in Laws, one thing remains the same: the knowledge of the Good as parameter for the formulation of good and fair laws. The problem arises when it's verified that, on a cosmic level, not only does good and fair seem to come from this Good but also the bad and unfair. Through the text, I'll show how Plato shows that the Good might be the source of the good things and also of the souls that practice evil, without It being responsible for the latter. For such, I'll elucidate how Plato introduces the idea of a self-moving soul governing the cosmos and the govern division of the universe in tiny parts, these governed by each soul as if they were archons.

Keywords: Plato. Source of evil. Laws. Self-moving soul.

Referências

CARONE, Gabriela Roxana. A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas. São Paulo. Edições Loyola. 2008.

PLATÃO. A República. Introdução, tradução e notas por Maria Helena da Rocha Pereira. Coimbra. Fundação Calouste Gulbenkian. 2010.

PLATÓN. Las Leyes. Edición bilingüe. Traducción, notas y estudio preliminar de José Manuel Pabón y Manuel Fernández-Galiano. Madrid. Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. 1999.

Notas

* Acadêmico do curso de Filosofia da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS-Chapecó). O presente artigo foi desenvolvido para o CCR Ética e Filosofia Política Antiga, sob supervisão do Prof. Dr. Juliano Paccos Caram. E-mail para contato: derocio_meotti@hotmail.com


[1] Cf. PLATÃO; A República; 2010; IV; p. 175, 427e.


[2] Sobre ser uma ou mais almas a governarem o universo, Carone diz: “De fato, quando Platão faz o Ateniense perguntar que 'tipo' de alma governa o universo (897b7), e posteriormente conclui que é a alma boa, 'uma ou muitas' (mian ê pleious, 898c7-8; cf. psuché ê psuchai, 889b5), poderíamos pensar à primeira vista que para ele a questão acerca da unidade ou multiplicidade das almas governando o universo é deixada em aberto. […] A razão para isso pode ser que decidir o problema não é crucial para o ponto de que Platão está tratando nesse tipo de discurso exotérico, nomeadamente que as massas devem acreditar em deus, seja ele único ou muitos.” (CARONE; A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas; 2008; p. 255)”.


[3] Tradução nossa com base em: “Convenzamos al muchacho con argumentos tambíen de que el que se ocupa del universo tiene todas las cosas ordenadas com miras a la preservación y a la virtud del total, mientras que cada una de las partes de éste se limita a ser sujeto u objeto, según sus posibilidades, de lo que le sea proprio. Y cada una de estas cosas, hasta em la más pequeña escala, tienen en cada acto o experiencia unos regidores engargados de realizar un perfecto acabamiento incluso em la más mínima fracción. (PLATÓN, Las Leyes; 1999; X, p. 176, 903b)”.


[4] Isso parece sugerido pelo próprio Platão nas Leis em 900e. (PLATÓN; Las Leyes; 1999; X, p. 172)


[5] É sempre bom esclarecer que quando Platão fala em “deus” ele não se refere a um deus em específico, mas àquela – ou àquelas – almas boas que governam o universo e zelam pelo bem dos seres humanos (cf. nota 3).


[6] Nas Leis Platão questiona: “Como uma coisa que é movida por outra pode ser aquela que inicia todo o movimento? Isso, com efeito, é impossível. (Leis X 894e5-6)”, tradução nossa com base em: “¿cómo una cosa que es movida por otra va a ser la primera que haga cambiar? Ello, en efecto, es imposible; […] (PLATÓN; Las Leyes; 1999; X, p. 161; 894e5-6)”.


[7] Tradução nossa com base em: “Lo digo; y si ello así, ¿tendremos que buscar otra demostración más adecuada de que el alma es asi mismo el primer origen y moción de todas las cosas que existen; han existido y habrán de existir y también de sus contrarias, pues se nos muestra como causa de todo cambio y movimiento en todos los seres? (PLATÓN; Las Leyes; 1999; X, p. 164; 896a7-8)”.


[8] Tradução nossa com base em: “¿No será necesario reconocer que el alma es la causa de los bienes y de los males, de lo hermoso y de lo feo, de lo justo y de lo injusto y de la totalidad de los contrarios, pues la hemos puesto como causa de todo? (PLATÓN; Las Leyes; 1999; X, p. 165; 896d5-9)”.


[9] Tradução nossa com base em: “Pongamos, pues, un cierto movimiento que puede siempre mover a otras cosas, pero no puede moverse a si mismo; y otro que puede perpetuamente moverse a sí mismo y a las otras cosas por mesclas y separaciones, aumentos y disminuciones, generaciones y destrucciones; y sea este último, a su vez, otra especie distinta en la totalidad de los movimientos. (PLATÓN; Las Leyes; 1999; X, p. 160; 894b7-13)”.


[10] Tradução nossa com base em: “el movimiento que puede moverse a si mísmo. (PLATÓN; Las Leyes; 1999; X, p. 164, 896a1-2)”.

[11] Tradução nossa com base em: “Casi todos los hombres, amigo mio, parecen desconocer el alma, cómo ella es y el poder que tiene; y, entre otras cosas relativas a ella, su nacimiento: esto es, que nace entre los seres primarios y es anterior a los cuerpos todos y gobierna capitalmente todo cambio y toda nueva ordenación de ellos. Siendo esto así, ¿no resulta necessario también que las cosas congénres del alma hayan nacido antes que las que pertenecen al cuerpo, siendo ella más antigua que ele cuerpo mismo? (PLATÓN; Las Leyes; 1999; X, p. 157, 892a2-10)”.


[12] Ao sugerir que no universo haja uma “alma automovente” que governa o universo, e um “universo” a ser governado, algumas pessoas podem interpretar a tese platônica como sendo uma tese que defende uma espécie de dualismo. Ou seja: o universo seria um todo composto estritamente por corpos físicos, e a alma cósmica que o governa seria como uma espécie de agente transcendente e independente, à parte deste universo físico. Este tipo de problema produz um outro problema: como esta alma interage com o universo físico? Isto seria de fato um problema para Platão se em sua tese ele afirmasse essa dualidade na realidade efetiva, o que ele de fato não faz. Na tese Platônica a alma cósmica – assim como todas as demais almas – são parte do universo físico, diferendo dos corpos físicos em apenas dois aspectos: 1) os corpos físicos são conhecidos por meio das sensações, enquanto a alma é conhecida por meio do intelecto, porém, sem sair do plano de realidade efetiva proposto por Platão; 2) os corpos físicos tem seu movimeno originado de fora, enquanto as almas tem origem uma interna do seu próprio movimento. Para um estudo mais aprofundado deste tema, cf. CARONE, A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas; 2008; pp. 246 e seguintes.

[13] Dizer que o universo é governado por uma alma boa e má é o mesmo que dizer que o universo é governado por uma alma indiferente, o que invalidaria a tese platônica, que depende da prova de que é uma alma boa a governar o universo. Sobre a possibilidade do universo ser governado por almas boas e almas más, cf. CARONE, A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas; 2008; pp. 251-253.


[14] Cf. nota 5.

[15] Tradução nossa com base em: “[...] si la marcha y traslación general del cielo y de cuantos seres en él hay es de índole semejante al movimiento, giro y razonamientos de la inteligencia, y se encamina de manera afín, no habrá duda em afirmar que es el alma mejor la que cuida del mundo todo y lo lleva por semejante camino. (PLATÓN; Las Leyes; 1999; X, p. 166; 897e5-10)”.

[16] Tradução nossa com base em: “O tal vez será que, al ver a hombres que llegan a la meta de la senectud em medio de los más grandes honores y dejando tras de sí hijos de sus hijos, te trastornas entonces al comprobar en todos estos casos, bien porque lo hayas sabido de oídas o porque lo hayas visto de modo innegable tú mismo al ser testigo de algunos de los muchos crímenes y fechorías que se producen, que es precisamente gracias a esto mismo por lo que han llegado de humildes lugares a las tiranías y a los más altos cargos; y entonces se hace evidente que todas las cosas tales como esas son las causantes de que tú, no queriendo, em virtud de la finidad, reprochar a los dioses el ser culpables de acciones semejantes, e impulsado también por la falta de sentido justamente com esa repugnancia a irritarte contra los dioses, hayas llegado ahora a esa situación em que crees que ellos existen, pero también que desprecian y se desentienden de los negocios humanos. (PLATÓN; Las Leyes; 1999; X, p. 171; 899e4-900b5)”.

[17] É importante lembrar que na República Platão estabelece um princípio que diz que a mesma coisa não pode ser origem de algo e seu oposto. Ele diz que “é evidente que a mesma coisa não admitirá produzir ou sofrer efeitos contrários no mesmo sentido, com respeito à mesma coisa e ao mesmo tempo. (Platão; A República; 2010; IV, p. 191, 436b8-9)”.

[18] Vide nota acima.

[19] O próprio caráter “automovente” é o que caracteriza uma alma propriamente dita.


[20] No livro X Platão questiona, como se perguntando a quem pertence a responsabilidade sobre o mal, “se não a nós mesmos, se é que pertence a alguém” (PLATÓN; Las Leyes; 1999; X, p. 172; 900e7-9; tradução nossa).

[21] Cf. CARONE; A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas; 2008; p. 275.





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