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A civilização do espetáculo de Vargas Llosa

A CIVILIZAÇÃO DO ESPETÁCULO DE VARGAS LLOSA

Derócio Felipe Perondi Meotti*

VARGAS LLOSA, Mario. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Tradução de Ivone Benedetti. 1. ed. Rio de Janeiro. Objetiva, 2013.


Quando nos deparamos com obras de arte da atualidade, ou com as superproduções de Hollywood, nos perguntamos: por que este tipo de coisa é mais valorizada do que obras de arte complexas, que exigem tempo e dedicação? Por que filmes com ideias fantásticas, como Melancholia de Lars Von Trier, não recebem quase nenhuma atenção quando comparados com Os Vingadores, por exemplo? Por que absurdos literários como 50 tons de cinza vendem muito mais do que obras de literatura profundas e complexas que, devido à baixa publicidade, nem temos condições de citar? Algumas teorias tentam explicar este fenômeno. Publicado em 2012, A Civilização do espetáculo cumpre com aquilo que promete no subtítulo: fazer uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. A intenção de Mario Vargas Llosa, ao escrever a obra, não era fornecer mais uma interpretação da cultura na atualidade – que o autor chamará de “sociedade do espetáculo” -, mas sim trazer à luz uma série de características comuns na literatura, na religião, nas artes plásticas, e em diversos outros ramos da cultura de nosso tempo, características estas que evidenciam uma derrocada cultural. A identificação desses aspectos se dá no decorrer da vida do autor, ao perceber a metamorfose pela qual a cultura passa desde seus tempos de mocidade até a maturidade, ou atualmente, se preferirmos. Sua longa carreira como jornalista, dramaturgo, ensaísta e crítico literário forneceu uma gama extensa de materiais com os quais trabalhar, o que torna a crítica mais contundente e realista, e não apenas fruto de uma análise local com pretensões generalizantes. A construção do texto se dá na forma de uma espécie de ensaio, uma síntese das reflexões que o autor fez no decorrer de sua vida. A obra se divide em quatro grandes partes, cada uma delas analisando um dos aspectos acima citados. Após cada parte, Vargas Llosa deixa à reflexão do leitor um “antecedente”, este composto por um ou dois ensaios – escritos pelo próprio autor – que o motivaram a desenvolver os capítulos do “ensaio maior" com base neles. A grande maioria dos ensaios foi publicada no jornal espanhol El Pais, conhecido por não se furtar ao debate crítico de temas polêmicos e controversos. Entretanto, antes de falarmos dos problemas levantados em cada capítulo, devemos falar brevemente do motivo da obra e da preocupação de Llosa: o que a cultura se tornou? A preocupação do autor se deve ao fato de que a cultura, entendida não no sentido antropológico, mas intelectual, vem passando por uma mudança que não só põe em risco a qualidade do que é produzido no âmbito estético, como também daquilo que é produzido nos âmbitos moral e social. Entretanto, separar o que é “expressão de uma determinada cultura” e cultura no sentido clássico não é uma tarefa tão fácil. Para auxiliá-lo neste distinção, Vargas Llosa faz uso dos pontos de vista de nomes consagrados, como T.S. Eliot – autor de The Waste Land – e George Steiner, além de outros autores de renome entre aqueles que fizeram estudos importantes sobre a cultura e suas perspectivas para o futuro. Apesar das peculiaridades de cada visão, Vargas Llosa identifica um denominador comum entre elas: a cultura da qual falam é a “alta cultura”, ou seja: aquela que tornou possível que obras de Michelângelo, Dante, Cervantes, Dostoiévski, Kant e outros pudessem surgir e ser reconhecidas pela complexidade, sutileza e valor dos seus trabalhos. Esta espécie de cultura, um tanto quanto apoiada numa ideia aristocrática – no sentido grego do termo – faz com que apenas o que atenda a determinados critérios estéticos, intelectuais e morais seja considerado cultura. Entretanto, o autor cedo adverte para o seguinte: é claro que o sentido antropológico de cultura – no qual todo conjunto de costumes e condutas, produções artísticas e intelectuais, e tantos outros aspectos da sociedade são levados em consideração – não é errado nem deve ser atualizado pela proposta d’A civilização do espetáculo, mas deve ser deixado em segundo plano na leitura da obra, já que não é determinante para entender seu objetivo central. Este objetivo, que fica mais evidente a cada página, consiste em mostrar que a cultura, no sentido de “alta cultura”, está desaparecendo num mar de frivolidade, banalidade e comercialização, e que a consequência deste processo que mercantiliza a cultura a ponto de fazer com que seu valor – no sentido estético, moral – se confunda com seu preço. Deste modo, este processo submete a cultura ao dogma do mercado, no qual vencem as produções de cunho cultural que mais conquistarem as massas ignorantes por meio da publicidade, e não por seu valor intrínseco ou complexidade. Este tendência da cultura em nosso tempo, segundo o autor, se deve à democratização da cultura, aliada à confusão com seu sentido antropológico: tudo é cultura, e todos podem produzi-la. Este democratização em si não é maléfica, já que permite que talentos possam surgir de toda parte – ou, pelo menos em tese, esta é a promessa da democracia – desde que o artista ou intelectual tenha condições de produzir. O problema – segundo Vargas Llosa – surge quando perde-se o critério para “separar o joio do trigo”, ou a “boa cultura” da “cultura de massa”, e a coisa piora quando se constata que o novo árbitro desse processo é uma publicidade ávida por dinheiro, além de uma opinião pública cada vez mais passiva a esta publicidade, que por não ter acesso nem tempo para se dedicar à tarefas como leitura e apreciação artística, cada vez mais deixa esta de lado em detrimento de uma cultura do entretenimento. Esta cultura do entretenimento carece de qualquer valor estético, moral e intelectual, segundo o autor, e faz com que as produções que mereceriam mais atenção sejam quase que completamente ignoradas, acelerando um processo que, segundo o escritor peruano, pode fazer com que nosso tempo seja o primeiro no qual a cultura é completamente ausente. A esta cultura do entretenimento, da diversão e da frivolidade, Vargas Llosa chama de “sociedade do espetáculo”. Esta sociedade é composta por pessoas que procuram uma espécie de fuga da realidade, e encontram esta fuga nas drogas, no cinema de Hollywood, na literatura dos best-sellers, nas religiões de fachada que sugam a vida dos fiéis com promessas absurdas como a imortalidade, etc. O meio intelectual não escapa desta tendência, e o autor identifica em nosso tempo aquilo que Alexis de Tocqueville já identificava nos Estados Unidos logo após sua independência em 1776: a democracia, a massificação e outros aspectos que conduzem a uma espécie de “tirania da maioria” acabam fazendo com que a genialidade seja substituída pela mediocridade, a glória pelo bem da maioria, e a virtude pela serenidade e frivolidade. Como Tocqueville, Vargas Llosa percebe que a tendência da democracia é a igualdade, e não a elevação de todos ao mesmo status da “aristocracia cultural”, e que para a democracia é inconcebível que exista uma espécie de “alta cultura” que diga o que tem valor estético e intelectual, e aquilo que não tem. Em cada capítulo, o autor aborda esse aspecto de “produção do espetáculo” em cada ramo da cultura da qual fala. Entre estes ramos, destacam-se a religiosidade, que aparece como sendo o “ópio do povo”, o erotismo, a intelectualidade, e o poder econômico, indentificado como o grande motor da indústria do espetáculo. Sobre o aspecto religioso, Vargas Llosa defende a tese de que as religiões – ou pelo menos a espiritualidade – são benéficas para a manutenção de uma cultura de alto nível, já que atua como fonte de respostas para quem busca um sentido para a vida, ou algum código moral ao qual seguir. A tentativa de extirpar a religiosidade da sociedade – como se tentou na Revolução Francesa e na Rússia com Lênin – só deixou evidente que ou esta espiritualidade permanece latente, ou encontra outros objetos e cultos nos quais se materializar. O autor, segundo sua leitura, e talvez um dos pontos mais discutíveis da obra, afirma que a religiosidade – para aqueles que não conseguem entender o que é laicidade, ateísmo e agnosticismo – é a única coisa que impede que a cultura se degenere a tal ponto que não consiga despertar mais nenhuma emoção nas pessoas, estas “perdidas” e “lançadas” na existência contra a sua vontade. Sem esta religiosidade ou espiritualidade para preencher o vazio deixado pelo ausente sentido da vida, as pessoas tendem a esconder-se por trás de “fórmulas rápidas” como as drogas, ou com qualquer coisa que proporcione um falso bem-estar, ou que empurre o “encarar o problema” para depois. Esta atitude, como sagazmente identificou Sartre em meados do século XX, chama-se Má-fé. Se a Má-fé é a atitude fundamental da sociedade do espetáculo diante de seus problemas e paradoxos no que diz respeito ao aspecto intelectual e espiritual, com relação ao erotismo o problema é a banalização do sexo. Segundo o autor, os grandes movimentos de libertação sexual do século XX tiveram tanto consequências boas quanto ruins. Entre as boas, Vargas Llosa identifica o fato de que hoje – graças à pílula do dia seguinte e à pílula anticoncepcional – as mulheres têm tanta liberdade quanto os homens para se relacionarem com quem quiserem quando quiserem. O recuo do conservadorismo religioso também foi algo benéfico – com a triste exceção de uma quantidade preocupante de países subdesenvolvidos -, já que não teve forças para reprimir tal revolução com perseguições ou boicotes em níveis institucionais. O movimento hippie também teve seu papel, já que fez clara oposição à monogamia e ao casamento aos moldes religiosos, pregando o amor livre e a fraternidade, ao invés da competição que tanto caracteriza a civilização ocidental. Entretanto, apesar de tantas conquistas e avanços no âmbito social, junto com elas veio a banalização do sexo. Segundo Vargas Llosa, a pornografia é um bom exemplo para mostrar como o sexo se tornou algo insípido, tão banal quanto amarrar os cadarços ou tomar banho. Ainda segundo ele, esta acentuada tendência da sociedade do espetáculo ao entretenimento, ao sensacionalismo e à diversão cada vez mais faz com que aspectos da sexualidade, no passado importantes, percam sua importância simbólica. O exemplo que o autor cita é o de regiões da Espanha que pretendem dar “aulas de masturbação” à pré-adolescentes, para que assim – segundo os defensores da proposta – os jovens sejam desde cedo conscientes da prática sexual, seus mecanismos e consequências. O que o autor faz não é negar os aspectos positivos da proposta e suas “boas intenções”, mas ressaltar que tais medidas reduzem o ato sexual humano novamente a algo mecânico, com simples objetivos reprodutivos, negando ao indivíduo o prazer da auto-descoberta, do mistério do amor ligado à sexualidade, bem como do erotismo de caráter transgressivo intrinsecamente ligado a ela. Todos esses aspectos – espiritualidade, intelectualidade, sexualidade – estão sofrendo mudanças drásticas com relação ao que eram até meados do século XX, segundo Vargas Llosa. Com isso, para finalizar, a causa que ele identifica para esta metamorfose degenerativa é a deterioração da cultura entendida como “alta cultura”. Esta deterioração é movida num primeiro momento pela democratização da cultura, ou seja: não sua abertura para pessoas que até algumas décadas não tinham acesso a ela, mas sim o rebaixamento de seu status a ponto de considerar toda produção como produção cultural. Num segundo momento, sua deterioração se deve ao próprio movimento econômico que, visando o lucro, sai à caça de produções baratas – não apenas no sentido financeiro – e fáceis de se produzir em larga escala, para depois, por meio de uma enorme publicidade – também voltada para o lucro – fazer com que absurdos sejam considerados cultura, e inversamente, que grandes produções culturais sejam não apenas consideradas absurdos e desperdícios de tempo, mas também quase completamente ignoradas.




Notas


* Licenciando em Filosofia pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS-Chapecó). Resenha desenvolvida para o CCR Leitura e Produção Textual II, sob supervisão da Profa. Dra. Morgana Fabíola Cambrussi. E-mail para contato: derocio_meotti@hotmail.com




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